Sou fotógrafo do Grupo Amigos do Fotografia e, como tal, fui convidado para registrar a representação do Calvário, que ocorre tradicionalmente em Ribeirão Preto.
Neguei-me, por não me sentir bem, utilizando, com fins artísticos, o sofrimento de quem quer que seja — ou de qualquer ser vivo —, mesmo que fruto de uma representação.
E lembrei-me de um artigo de Aldo Pereira, colaborador especial da Folha, que leva o mesmo título desse meu texto:
“Nas horas que precedem a tourada, auxiliares se ocupam de preparar o touro. Penduram-lhe no pescoço pesados sacos de areia para fatigar os músculos que acionam as chifradas. Passam-lhe vaselina nos olhos para embotar-lhe a visão. Desde a véspera, ou até antes, não o alimentam. Na pouca água que lhe dão, misturam purgantes: perda de fluidos e sais na diarreia irão levá-lo mais cedo à exaustão.
A intenção é reduzir-lhe a capacidade de lutar, não a disposição, que buscam excitar ao confiná-lo em curral escuro e exíguo. Ali, golpeiam-lhe os rins e espicaçam os testículos com longas agulhas. Quando finalmente o deixam galopar para a falsa liberdade da arena, o touro primeiro ataca, aterrorizado, furioso, aturdido pelo sol que reverbera na areia.
Depois, ataca o primeiro inimigo a provocá-lo: o picador, toureiro montado e armado de lança, pernas protegidas por armaduras. Enquanto chifra o cavalo ( precariamente protegido pela “calzona” de camurça) e o comprime contra o muro da arena , o touro expõe a nuca a pontaços da “puya”, ponta piramidal da lança. Afiadas arestas da “puya” rasgam o couro e rompem tendões e ligamentos, sem aprofundar os ferimentos.
Para prevenir importunos relinchos de terror, prévia operação sem anestesia terá extirpado as cordas vocais do cavalo. Se incapacitado por chifradas, ele será abatido. Mas, caso lhe sobre alguma força, passará por grosseira sutura dos ferimentos, sempre sem anestésico, para ser aproveitado na tourada seguinte.
Depois do picador, toureiros subalternos virão atormentar o touro com as bandarilhas que lhe fincam no dorso, enquanto o rodeiam e confundem. Corcovos para livrar-se desses dolorosos arpões coloridos meramente aumentam lacerações e o sangramento do touro, mas divertem e excitam o público.
Entra em cena o matador. Também ele terá passado por preparativos esmerados. Entre estes, oração contrita perante réplica da chorosa Virgem da Macarena, santa tutelar dos toureiros. Na arena, depois de elaborado balé de esquivas e rodopios da “muleta” (capa usada no ato final) , o toureiro se posta diante do touro exausto e atordoado, arranca em curta corrida e crava-lhe a espada num dos lanhos abertos pela “puya”.
A lâmina pode penetrar mais de meio metro, perfurar um pulmão e também alguma artéria grossa; hemorragia profusa fará o touro golfar sangue enquanto sufoca e tomba. Tentará reerguer-se, mas outros toureiros acorrem para cravar-lhe entre vértebras da nuca repetidos golpes de “puntillas” (adagas) para destruir-lhe a medula espinhal e paralisá-lo.
Exultação orgástica do público. Acenos de lenços brancos sinalizam ao diretor da tourada que conceda ao toureiro a honra de decepar uma orelha do touro que, ainda consciente, bufa sangue e agoniza”.
Para mim a representação anual do sofrimento de Cristo, numa sociedade que ainda se compraz com touradas, rinhas de galo, rodeios, lutas de cães, caçadas, é, para muitos, mais um evento recreativo que inclui matança e tortura,e , portanto , deveria ser retirada das atividades religiosas que marcam a morte de Jesus: puro sadomasoquismo e mau gosto.
Na sexta-feira santa, só deveríamos nos lembrar da vida, e não de torturas, sangue e morte: disso já temos de sobra no dia-a-dia.
Parece-me que, para alguns, é prazeroso ver martirizar e matar o Cristo a cada ano: é apostar na morte e no sangue ao invés de na alegria, na vida e na ressurreição.
Como fazemos com nossos mortos no Dia de Finados, deveríamos nos lembrar de momentos fortemente representativos da vida do Nazareno, Filho de Deus feito homem, tendo em vista que Ele mesmo afirmou: estarei sempre com vocês, até a eternidade.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA:
Maravilha, Tórtoro.
Espetacular seu texto sobre touradas, rodeios e exploração comercial de animais. Já havia sido banido o rodeio aqui em Ribeirão.
Agora ele está voltando, o RIBEIRÃO RODEO MUSIC.
Sou, como você, uma das poucas vozes na mídia a criticar essa tipo de barbárie.
Parabéns, meu caro.
Já estou divulgando para tantos outros.
Abraços.
Antonio Cassoni
Meu caro amigo Tórtoro,
Acabo de ler mais um artigo seu no Tele-história. Fantástico. A analogia entre procissão do enterro e a macabra tourada é perfeita. Está em total sintonia com o que eu penso. Nunca suportei olhar para um crucifixo e ver nosso Mestre agonizando e cravado na cruz.
Como você bem disse, puro sadomasoquismo e mau gosto.
Assim como a igreja católica explora o capeta como fonte de renda, faz verdadeira chantagem emocional com essa monstruosidade ocorrida há dois milênios.
Meu tríplice e fraternal abraço.
Jugurta de Carvalho Lisboa
Li há pouco, no site Telehistória, o excelente artigo de Antônio Carlos Tórtoro, “Cultura da Crueldade: Touradas e Calvário”. Seu posicionamento sobre os horrores das touradas e a necrofilia das procissões da Semana Santa é idêntico ao meu.
Trecho do artigo de Ely Vieitez Lisboa , “ Mundo Doente” publicado no jornal A Cidade de domingo, 26/04/2009.
Olá primo Tórtoro.
Achei muito oportuno esse artigo seu veiculado na revista Evidência.
Lamentavelmente é muito triste constatar que muitos dos seres “humanos” não respeitam outros chamados “animais”. Esquecem que todos são obra do mesmo Criador e, portanto, com os mesmos direitos ( amor, respeito, dignidade, etc ).
Para esses seres “humanos”, a maldade por si só já não basta: é preciso ser cruel.
Adair Porfírio