LI E GOSTEI : FOGO AMIGO

FOGO AMIGO

 

A leitura de Fogo Amigo, de A.B. Yehoshua lembra um pouco o filme Monsieur Verdoux,  de Chaplin, na década de 30, em que duas estórias  correm paralelas: a de um caixeiro-viajante e de um bem-sucedido homem de negócios.

Entre uma vela e outra, acesas no tempo festivo do Hanukah, numa composição contrapontística, durante sete dias, em sete capítulos, Yehoshua  conta um pouco da vida de um casal  israelense de meia-idade, vivendo por sete dias, separados por quilômetros de distância, mas unidos por uma irrupção incontrolável da memória e da ancestralidade.

Yaári está às voltas com os cuidados exigidos pela doença do pai e as visitas devidas aos filhos e netos, enquanto os uivos lancinantes emitidos pelo poço de elevadores de um edifício ultramoderno recém-construído em Tel Aviv desafiam sua reputação de bem sucedido engenheiro projetista. Sua esposa , Daniela, professora do ensino secundário, aproveita o feriado escolar para viajar até um lugarejo perdido na savana da Tanzânia, procurando no silêncio de Yirmiyáhu —  ex-cunhado decidido a cortar todos os vínculos com Israel —, os traços fugidios da presença da irmã morta.

A intensiva carga simbólica dos eventos aparentemente banais da trama do romance aponta para a universalidade da arte narrativa de A.B. Yehoshua.

Fogo amigo permite ao leitor viver a vida de personagens em locais diametralmente diferentes, e fazer comparações entre nós e outros povos, distinguir culpas fictícias de culpas reais.

Durante os poucos dias que levei para ler as quase 400 páginas, convivi com os guinchos de elevadores  — e os lamentos das numerosas famílias israelenses dilaceradas pela violência da guerra, os misteriosos ruídos que perturbam a frágil tranqüilidade do feriado de Yaári — e, ao mesmo tempo,  percorri desoladas paisagens africanas, onde  a ancestralidade arqueológica  da espécie humana convive de  modo intrigante com as sombras do passado da pequena família israelense, perturbada pela morte de um de seus membros pelo “fogo amigo” das forças de ocupação na fronteira da Cisjordânia.

Na realidade, Chaplin fala sobre o Estado , e Yehoshua fala sobre o ser humano.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11944-1

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