LI E GOSTEI : “UMA SOLIDÃO RUIDOSA: UM PORRE DE REALISMO MÁGICO”

“Quando meu olho pousa em um livro real e olha a palavra impressa, o que ele vê são pensamentos descarnados voando pelos ares, deslizando no ar, vivendo do ar, voltando para o ar, pois, no fim, tudo é ar”.

 

Bohumil Hrabal
Pela primeira vez em minha sexagenária existência, terminei de ler um livro e, imediatamente, voltei à sua primeira página para recomeçar a leitura: e faria isso mais vezes com enorme satisfação.
Essa foi a reação causada em mim por um dos últimos trabalhos de um dos mais importantes autores tchecos contemporâneos, Uma solidão ruidosa, publicado em 1976, que parece, à primeira vista, produto clandestino de um país sob um regime repressivo, como o que vigorava na então Tchecoslováquia soviética. No entanto, passados mais de trinta anos do fim do comunismo no país que acabou se dividindo em duas nações distintas, o relato de Bohumil Hrabal pode ser lido como um dos momentos altos de um tipo de realismo mágico típico dos países da Europa central e do leste.
O narrador, Hanta, passou os últimos 35 anos de sua vida compactando papel usado em uma velha prensa hidráulica, num porão de Praga, infestado de ratos: “ser compactador é um serviços que requer não apenas uma educação clássica, de preferência em nível universitário, mas também um diploma de teologia, porque na minha profissão a espiral e o círculo se juntam, o progressus ad futurum encontra o regressus ad originem”. Durante esse período, Hanta aproveitou para salvar da destruição mais de 3 toneladas de livros raros, possivelmente banidos pelo regime, que ele acabou sorvendo junto com os milhares de litros de cerveja que faziam a alegria de sua alma atormentada. Parte desses livros — Aristóteles, Nietzsche e Goethe são apenas alguns dos autores  — Hanta vende para um professor, outra parte é doada a um amigo. O resto permanece estocado precária e ameaçadoramente acima de sua cama, no minúsculo apartamento onde mora.
As mulheres de sua vida — uma anônima garota cigana e a infeliz Mancinka — junto com seu chefe e ele mesmo, entre outros personagens — o cigano fotógrafo com óculos de armação dourada, as ciganas azul-turquesa e violeta aveludada, o professor de Filosofia, as presenças etéreas de Jesus e Laozi ao lado da prensa — formam uma galeria humana bizarra e variada que garante a Uma solidão ruidosa o status de genuína pérola literária, concisa e muito poderosa. Seus temas de fundo, vastos e evocativos para o leitor de qualquer época, vão da persistência da memória à evanescência de todo  texto literário, das inconsistências  do desejo à implacabilidade de uma tecnologia dominada por burocratas insensíveis — a prensa de Bunny sustituindo trabalho de 20 prensas comuns, nas mãos dos jovens da Brigada de Trabalho Socialista — , que acabam ameaçando a própria vida do fabuloso Hanta.
Ler essa obra de Hanta:  “É como jogar lindas frase na boca e chupá-las como balas de fruta, ou sorvê-las como licor, até o pensamento se dissolver em nós feito álcool, infundindo-se no cérebro e no coração e atravessando as veias até a raiz de cada  vaso sanguíneo”.
Enfim, Hanta pode ser um idiota encharcado de cerveja, como diz seu chefe, — um idiota diferente, capaz de citar o Talmude, Hegel e Kant com sua cultura bizarra e desorganizada, subproduto do trabalho braçal que desempenha — mas deixará marcas indeléveis na alma e no coração daqueles que amam os livros.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

70_10133-1

Li e gostei, LITERATURA