“Sabe de uma coisa, pensar é a segunda coisa mais bonita. A mais bonita é a poesia. Se houvesse o pensamento poético e a poesia pensante, seria o paraíso”.
Amadeu Prado
Ler com Raimundo Gregorius , o “Mundus” , as palavras, destacadas em itálico, do “Ourives das Palavras”, Amadeu Prado, em Trem Noturno Para Lisboa — livro de Pascal Mercier, pseudônimo usado pelo filósofo Peter Bieri — é uma viagem inesquecível em trens que cada um de nós somos: “Vivo em mim mesmo como num trem em movimento”.
Ler essa obra que já vendeu 2,5 milhões de exemplares no mundo, e que se transformou em filme de grande sucesso — adaptação para o cinema feita em 2003 com Jeremy Irons e direção de Bille August —, leva-nos a pensar a cada momento : “ Como seria depois de ler a última frase? Sempre temera a última página, e a partir do meio do livro já o afligia periodicamente o pensamento de que teria de haver, de forma irremediável, uma última frase”.
Para quem já leu A Culpa é das estrelas, de John Green, um livro para jovens adolescentes, encontrará em Trem Noturno a mesma busca — a vontade de se conhecer melhor o autor depois de se conhecer sua obra — mas com duas diferenças: Trem Noturno é para adultos, e o escritor a ser melhor conhecido, Prado, está morto.
Para quem acompanha o noticiário sobre o Ministro Joaquim Barbosa e suas dores na coluna, é possível se travar um paralelo interessante entre a vida do pai de Prado, Juiz que se entregou ao governo de Salazar e sofria de fortes dores na coluna (Doença de Bechteren) , chegando ao ponto de poder ter buscado o suicídio — não se sabe se pela dor física ou pela dor moral de haver enviado muitas pessoas para a prisão de Tarrafal — ao contrário de nosso Barbosa que enfrenta o poder e paga um alto preço pela sua coragem.
Nos meus sessenta e cinco anos identifiquei-me muito com Prado e “Mundus”: “Quando o tempo de uma vida se torna raro, as regras passam a não valer mais. Então parece que você perdeu o rumo e está maduro para o manicômio. Mas no fundo é precisamente o contrário: para o manicômio deveriam ir aquelas pessoas que não querem se dar conta de que o tempo ficou raro, aqueles que continuam como se nada tivesse acontecido”.
A todos os pais, Prado deixa um sério recado: “Estremeço só de pensar na força não intencional e desconhecida, porém inexorável e inevitável, com que os pais deixam marcas nos seus filhos, as quais, como marcas de queimadura, nunca mais poderão ser eliminadas. Os contornos dos seus desejos e medos inscrevem-se como ferro incandescente nas almas dos pequenos, cheios de desconhecimento e impotência em relação àquilo que acontece com eles. Precisamos de uma vida inteira para achar esse texto marcado a fogo sem jamais ter certeza se o compreendemos”.
Enfim Trem Noturno para Lisboa é uma empolgante narrativa da história de Raimundo Gregorius – professor de línguas clássicas que decide abandonar trinta anos de uma vida previsível e sair de Berna para Lisboa. Antes, ele encontra o livro do autor português Amadeu Prado, Um ourives das palavras, que orienta toda a narrativa de Pascal Mercier. O protagonista refaz passos de Prado e descobre nele o médico e poeta admirável que lutou contra a ditadura de Salazar, depois de haver salvo da morte Rui Luis Mendes , o “Carniceiro de Lisboa”. No percurso, o leitor é conduzido a vários mundos (trens), inquietações e transcendências ao conhecer personagens como Estefânia Espinhosa, Maria João, Mélodie, Silveira, Jorge O’Kelly, Doxiades, Florence, Fátima, Mariana e João Eça, Padre Bartolomeu, Adriana e as respectivas experiências de vida de cada um, envolvidos em dramas, triângulo amoroso e momentos marcantes de gente como nós: “…retalhos de uma textura tão disforme e diversa que cada pedaço, a cada momento, faz o seu jogo. E existem tantas diferenças entre nós e nós próprios como entre nós e ou outros” — Michel de Montaine.
Assim como “Ave Palavra ! “, uma antologia poética coordenada por Ely Vieitez Lisboa — respeitadas as devidas proporções — a obra de Mercier é também um monumento erguido à Palavra: “As palavras deveriam ser imaculadas como o mármore polido, deveriam ser puras como os sons numa partitura de Bach, que transformam em silêncio profundo tudo o que não são”.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
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