O PACIENTE DO QUARTO 202

PE-DE-JATOBA
“Que bom que Deus fez de nós dois mais do que pai e filho, e permitiu que a gente dividisse o brilho do sol que para muitos jamais vai nascer”.

Mais Que Pai E Filho – Rick & Renner

Num friorento final de julho, no quarto 202 do Hospital Santa Lydia, contei cada minuto do meu tempo nas gotas que pingavam em busca das veias nonagenárias de meu pai, Claudio: por três longos dias meu relógio foi um equipo de soro.
Ao redor tudo de branco.
O mundo por três dias pareceu-me ser feito de algodão e gaze.
O algodão não tem contorno, é macio.
Posso tocar de leve, posso enterrar os dedos nos vultos algodoados que são os médicos, enfermeiras, seja lá o que for, ou apertar nos braços esse fardo de algodão difuso que toma conta do quarto, que simula luz dissolvente.
Só meu pai, apesar dos seus brancos e ralos cabelos e barba malfeita, não é de algodão: é de carne flácida desgastada pelo tempo e coberta por dezenas de manchas pigmentadas de um marron escuro.
Seu rosto está próximo de máscara mortuária que só demonstra ter vida quando dele se aproxima um rosto solícito que se inclina sobre ele: é quando abre a boca para dizer alguma coisa que não ouço — mas posso adivinhar ser uma das dezenas de histórias que ele não se cansa de contar e recontar, cada vez que alguém se aproxima — e a matéria branca, branda, torna a engolir esse esboço de pessoa.
Outras enfermeiras se aproximam, conversam baixinho, alisam os lençóis, trocam de lugar as bolsas de sangue e/ou soro penduradas no teto branco,consultam pranchetas, enfiam termômetros, sorriem, sempre sorriem, sorriem demais quando não há razão para sorrir, e uma delas faz um elogio ao paciente inerte.
Em tempo: o sangue também não é branco.
O sangue que escorre pelo tubo e entra nas idosas veias do meu velho, me permite fixar o olhar sobre algo negro, rubro, para tentar fugir de um quase sono branco que me sorve, e assim ouvir retalhos de diálogos de gente desconhecida que passa pelos corredores: visitas que em horário marcado quebram a unidade do branco.
De repente salto da cadeira, fujo do branco sufocante, e vou para o corredor ainda iluminado pela luz do sol, e pelos reflexos de nuvens avermelhadas, contemplar o final de tarde pela janela envidraçada do segundo andar, que emoldura um pé de jatobá coberto pelas ruidosas maritacas que buscam por abrigo antes do cair da noite.
Um veículo entra no estacionamento logo abaixo da janela, descarrega um leve esquife, que minutos após volta carregado por dois homens.
Por instantes meus olhos lacrimejantes se voltam para um crucifixo azulado, encabeçando uma torre: o prisma retangular da Igreja de Santo Antônio.
Volto ao 202, convido meu velho pai para um passeio curto até a janela, mas que o conduzirá a uma distante história do nosso passado, meu e dele: as origens do meu nome, Antonio.
Segundos que representam sessenta e quatro anos, minha idade: postamo-nos ali,pai e filho, até o sol se pôr, e voltamos juntos para o branco do quarto em passos vacilantes, agora iluminado pelo neon.— almas purificadas e em paz com nossas consciências de dever cumprido.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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