LI E GOSTEI: O OBSCENO PÁSSARO DA NOITE

UM VOO INESQUECÍVEL COM OBSCENO PÁSSARO

“A herança natural de todo indivíduo capaz de ter uma vida espiritual é uma floresta indômita na qual o lobo uiva e o obsceno pássaro da noite chilreia.”
Henry James Jr

Uma sensação indescritível de tontura, uma experiência incômoda, um passeio por uma estrutura em que se confunde a voz narrativa a cada momento, uma viagem fantástica e monstruosa pela mente do narrador que nos faz lembrar grandes nomes da literatura hispano-americana: Gabriel Garcia Marquez e Mario Vargas Llosa.
Faz-se necessário um esforço para que possamos compreender as visões e vozes que durante a leitura desse texto nos dá uma sensação de insegurança e tensão.
Pareceu-me estar numa montanha russa ao seguir o fluxo de consciência de Mudinho — tal qual em obras de Clarice e Proust — morador mais antigo de uma casa que abriga senhoras idosas, órfãs e freiras.
Ler essa principal obra de José Donoso, escritor chileno, é, mergulhado num clima que não separa fantasia da realidade, encarar o horror, sentir nojo, mas também é, como um pássaro da noite, sobrevoar e penetrar no mais íntimo de seus personagens, repensar idéias e sensações que já tivemos algum dia, é encontrar escondidas em algum lugar no sótão de nossas almas imagens, lembranças, viagens, pensamentos, sensações: é poder ver o humano como um louco vê o mundo, sem filtros.
Em algum ponto da leitura, pensei em desistir, porque não é fácil encarar suas quatrocentos e oitenta e oito páginas: é um livro do tipo ame-o ou deixe-o.
Eu amei.
Andei, relembrando parte do meu passado, pelo casarão que seria demolido — trabalhei por anos no prédio em forma de U do antigo Colégio Santa Úrsula, que abraçava o pátio das mangueiras, hoje demolido e cedendo lugar ao shopping de mesmo nome — sentindo com as velhas e órfãs da Casa de Exercícios Espirituais a insegurança com relação ao futuro: “ Havia noites em que se escutavam até muito tarde, por trás das portas das cem celas que formavam um U, abraçam o pátio das laranjeiras, choros e gemidos…”
O narrador de Donoso não é nada confiável, confundindo presente com passado — chega a mudar sem aviso prévio a voz narrativa muitas vezes numa mesma frase — mergulhando o leitor numa atmosfera delirante: se a leitura não for muito atenta, nos perdemos na caótica cabeça confusa e desordenada de Mudinho.
O mundo de Donoso é obscuro, tal o pássaro do título, envolto de miséria moral e social, habitado por seres bizarros, grotescos, excêntricos e a estrutura de sua obra destrói de forma genial, totalmente desconcertante, toda e qualquer estrutura com a qual estamos habituados: uma solução que o autor propõe com relação à literatura de sua época — o chamado boom da literatura hispano-americana, na década de 60, tempos de Carlos Fuentes, escritor admirado por Donoso e representante da ânsia por ruptura de barreiras — em que “as obras consagradas eram elogiadas e estudadas nas escolas, universidades em todas as instituições, e que a um escritor iniciante cabia apenas seguir-lhes os moldes, a fim de que seus futuros romances se parecessem com as obras de leitura obrigatória e também muito oportunas às empreitadas editoriais que a eles se dedicassem”, como dizia o próprio Donoso.
Segundo Maria Célia Martirani :
“Com efeito, o enredo está tão bem costurado à estrutura que é possível perceber nitidamente dois eixos de força básicos ao redor dos quais a narrativa oscila: a opressão asfixiante de ambientes claustrofóbicos — em que velhas decrépitas, antigas empregadas das oligarquias locais arrastam-se como sombras, com suas histórias, tiques e manias — e a insistente, mas vã, tentativa do escritor/personagem Humberto Penaloza de criar, por meio de sua obra, uma janela que se abra para fora daquele ambiente soturno — traduzindo, assim, a ânsia por ultrapassar as fronteiras da dicção regionalista, tão imperativa antes da década de 1960. Importa notar que esse romance foi publicado em 1970.A clausura fantasmagórica é muito bem construída na Casa de Exercícios Espirituais de Chimba, em que vivem as velhas, algumas freiras, poucas jovens órfãs e Mudinho (o carcereiro, detentor de todas as chaves da casa) e remete ao aprisionamento ditado pelos parâmetros daqueles critérios literários redutores, adotados antes do boom, que cerceavam qualquer inventividade formal. Recuperando algumas lendas locais, superstições, feitiços e bruxarias e investindo nos relatos das velhas e de suas narrativas a fim de recuperar uma certa poética folclórica da oralidade, o narrador — que se multiplica e se escamoteia, transfigurado em mil disfarces, fruto também da feitiçaria criativa —, a uma certa altura, explica o que vem a ser o imbunche, que na tradição popular chilena é um monstro maléfico de rosto voltado para as costas que anda só com uma perna por ter a outra colada à nuca. A função desses seres horrendos era montar guarda aos tesouros escondidos das bruxas. A recorrência a essa figura, retomada da tradição autóctone, remete-nos, de imediato, à crítica aguçada ao poder das oligarquias locais e dos regimes tirânicos que submetem os mais fracos, alienando-os e fazendo com que permaneçam subservientes e resignados. Em boa medida, em O obsceno pássaro da noite, é possível perceber essa travessia do claustro obscuro à luz como metáfora sensível da derrubada das fronteiras de uma literatura que se voltava para si mesma, no momento em que passa a se abrir em direção ao mundo. Parece-nos então, que Donoso exorciza, no ato mesmo da escrita, os demônios de cujos traumas não consegue se livrar com facilidade”.
Para finalizar um destaque: a criação da Rinconada em que só residem monstros, todos frutos da pena ficcional do personagem Humberto Penaloza — ficção dentro da ficção — , um espaço à parte, totalmente isolado do resto do mundo e habitado apenas por outros seres deformados, a fim de que o menino deformado, Boy —filho de Jerônimo Azcoitia, poderoso oligarca de Chimba —se habitue a achar “normais” os indivíduos que lhe estão ao redor. No fundo, o que aqui se propõe é uma total relativização dos conceitos dicotômicos de normalidade e anormalidade, um verdadeiro estremecimento das bases consagradas sobre o conceito de beleza.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br
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