“Alô, alô, marciano / Aqui quem fala é da Terra / Pra variar estamos em guerra…”
Elis Regina
Início de outono, num quase primeiro de abril que não era de mentira: final de um relacionamento que durou por quase trinta anos.
Atingiu-me, fulminante, a mensagem do professor Richard Correa no Face: “Emma faleceu hoje. Seu corpo será velado no velório da Saudade, e o sepultamento ocorrerá às dezessete horas”.
Quando conheci Emma Miranda ela era Orientadora Educacional, e eu, Coordenador Pedagógico e responsável pela disciplina no Colégio Santa Úrsula, antigo “Santão” da rua São José.
Muitos foram os atritos iniciais por conta da diferença de pontos de vista que tínhamos sobre como educar: eu um jovem educador de trinta anos, rigoroso no controle dos indisciplinados e ela, mais experiente, calma, paciente, tranqüila, e ferrenhamente contrária a qualquer tipo de punição: física ou verbal.
Mas nada que viesse a impedir nossos futuros anos de amizade e troca de experiências.
Eu me lembro bem das gotas dos remédios sempre eficazes, “tarja preta”, contadas meticulosamente sob o olhar preocupado do “paciente”, que Emma ministrava aos alunos que reclamavam desde dor de cabeça até torcicolo: gotas de água, diluídas em meio copo de água e pronto, cinco minutos e nenhum sintoma mais. Era o remédio “milagroso”, uma poção que só a Emma possuía, qual uma feiticeira do bem.
Em 1991 essa educadora argentina, incrivelmente reservada, solteira convicta, resolveu deixar em definitivo seu trabalho no Colégio Santa Úrsula.
Na oportunidade dediquei a ela um poema, La Boca, publicado em meu primeiro livro de poemas, Ecos.
LA BOCA
Vem De La Boca o sangue argentino. / Napolitano o desejo de lutar. / Das ruas estreitas de bairro em chão divino / Conservadora visão veio a gerar. / Qual milagre em local tão pequenino, / a grande alma nasceu para educar. / E os mesmos mares e praias de Martin / deram-lhe paz para chegar até o fim. /
O vinho farto, e da planície o trigo,/ que na portenha região tem seu lugar, / Eucaristia natural e Deus consigo,/ no celibato não faltou a quem amar. / Mas de ficar só não haveria nenhum perigo, / pois teria mais filhos do que há peixes no mar. / Tem dois países, um que é verde e amarelo: / nasceu em outro de azul de céu mais belo.
Passou o tempo e o sonho ganhou vida, / Fez-se em mil rostos e contos a contar. / Foram momentos de angústia envolvida: / cada ferida com amor viu-se curar. / Felicidade de fonte sempre oferecida / a quem sua sala quisesse adentrar, / sorriso fácil e portenho coração, / sempre sobraram em sua orientação.
Agora, adeus às fichas e aos casos impossíveis. / Não mais os livros e as mil anotações. / Longe dos pais e dos problemas tão difíceis / é estar no Éden, longe de atribulações./ Mas é também estar distante de sensíveis / e eternos companheiros de ações. / É estar sempre, e não ser nunca esquecida, / é ser eterna, enquanto durar a vida.
Mas o mais importante estava por vir.
A partir de 1992, em cada dia 22 de agosto, dia do meu aniversário, o primeiro e infalível telefonema que eu recebia era de Emma. Uma conversa rápida, sempre num tom carinhoso, seguida dos cumprimentos tradicionais, que eu retribuía todo dia 13 de janeiro.
Infelizmente no próximo dia 22 de agosto tenho absoluta certeza de que algo muito importante me fará falta: um telefonEMMA.
Alô, alô, minha amiga: descanse em paz…enquanto aqui continuaremos nossa guerra.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
WWW.tortoro.com.br
Na foto: Emma, comigo, na sala da Orientação Educacional, década de 90, na entrega dos alimentos da Gincana Beneficente do Colégio Santa Úrsula.