LI E GOSTEI: DAS DORES

SOMOS TODOS DAS DORES

Degustando Das Dores, de minha amiga Vera Regina Marçalo Gaetani, dois pensamentos interferiram na minha leitura: a história do Negrinho do pastoreio e a vida de minha mãe.
A primeira interferência é óbvia porque na versão da lenda escrita por João Simões Lopes Neto, o protagonista é um menino negro e pequeno, escravo de um estancieiro muito mau; este menino não tinha padrinhos nem nome, sendo conhecido como Negrinho, e se dizia afilhado da Virgem Maria. Após perder uma corrida e ser cruelmente punido pelo estancieiro, o Negrinho caiu no sono, e perdeu o pastoreio. Ele foi castigado de novo, mas depois achou o pastoreio, mas, caindo no sono, o perdeu pela segunda vez. Desta vez, além da surra, o estancieiro jogou o menino sobre um formigueiro, para que as formigas o comessem, e foi embora quando elas cobriram o seu corpo. Três dias depois, o estancieiro foi até o formigueiro, e viu o Negrinho, em pé, com a pele lisa, e tirando as últimas formigas do seu corpo; em frente a ele estava a sua madrinha, a Virgem Maria, indicando que o Negrinho agora estava no céu. A partir de então, foram vistos vários pastoreios, tocados por um Negrinho, montado em um cavalo baio.
Negrinho e Das Dores são sofredores que se transformam em santos.
A segunda interferência, menos óbvia para quem não conhece a infância e adolescência de minha mãe, veio-me à mente porque Terezinha ficou órfã de pai e mãe aos 8 anos, e foi criada por uma família de posses até o momento de seu casamento com meu pai: e sempre contava como é doloroso ser criada sem os pais.
Reencontrar duas marcas do passado de minha infância: foi isso que Vera conseguiu fazer com suas Das Dores.
E refleti: somos todos Das Dores.
Todos nós nascemos, sofremos e morremos, e “todo mundo vira santo depois que morre”: é o que dizem.
Talvez por isso todo leitor se identifica com a personagem principal: “como um escultor que, a cada cinzelada, vai modelando a matéria bruta, nossa escritora vai construindo sua personagem, antecipando tantas dores, ao mesmo tempo que injeta uma expectativa de libertação” — comenta minha amiga, Nely Cyrino de Mello, no prefácio da obra.
Não é isso que todos fazemos tragicamente entre o nascer e o morrer: antecipamos dores com a expectativa de libertação…mas, infelizmente, sem a delicadeza e poesia do texto de Vera?

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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