LI E GOSTEI: UMA SENSAÇÃO ESTRANHA

 

VOANDO PARA ISTAMBUL

“A loucura de Pamuk contém uma genialidade única”.

Umberto Eco

Ler Orhan Pamuk é tão estonteante quanto tomar algumas doses de raki.
Identifiquei-me com seu personagem Mevlut desde as primeiras cem páginas do livro, e, como ele, me apaixonei pelo feitiço dos olhos de Samiha: o amor que ele sempre sentiu pela esposa, Rayiha, e filhas, o sexo discreto e respeitoso, a obediência às leis vigentes, a dedicação ao trabalho, o não envolvimento com movimentos organizados por adeptos de governos ditatoriais e/ou somente com fachada democrática. E da mesma forma que Mevlut: nos últimos anos, temo a velhice, a morte e o esquecimento.
Apesar de Istambul ser personagem na maior parte do livro — com uma população de 3 milhões de habitantes no início da história e chegando aos 10 milhões quando de seu final — ao perambular com Mevlut durante mais de 40 anos pelas ruas mal iluminadas — sob ameaça dos cães abandonados, gritando “boooo-zaaa”, sua maneira de fugir da dura realidade do dia a dia —, acostumei-me com as metamorfoses ininterruptas e alucinantes da cidade, com a fauna de aventureiros mafiosos, aventuras políticas, choque entre tradição e religião, tudo produto da ocidentalização rápida ocorrida no espaço de poucas dezenas de anos.
Ao ler as quase seiscentas páginas de “Uma sensação estranha”, de Orhan Pamuk — sentindo o cheiro da canela da Boza, e, graças ao Google, ouvindo músicas populares da cultura turca com Erol Sayan, Emel Sayan, Lady Blue — lembrei-me das palavras de John Berger:
“…folheando um livro página a página, uma após outra, aprendi algo que nunca tinha percebido antes e que creio poder descrever.
Normalmente, quando lemos um jornal ou um livro, os seguramos nas mãos. Enquanto isso, aquilo que estamos lendo, seja uma nota jornalística, seja um poema ou uma tese filosófica, leva nossa atenção e parte de nossa imaginação para outro lugar.
A criança que lê corre ofegante para o próximo mistério; o homem velho rememora. Mas ambos viajam.
Mesmo a leitura de uma simples palavra como PERIGO ou SAÍDA implica um deslocamento; nesse momento, prevemos um perigo ou nos imaginamos seguindo o sinal de saída.
Quando as palavras se juntam em frases e as frases preenchem páginas inteiras e as páginas contam uma história, o deslocamento torna-se uma jornada e as páginas tornam-se um veículo, um meio de transporte. Não obstante, quando lemos mantemos as páginas bem imóveis. Assim, há uma tensão entre o gesto manual e a viagem. Muito antes de o homem poder voar, sua jornada era como um voo. Os que primeiro leram Homero voaram para Troia”.
Eu, durante duas semanas, voei para a Turquia, mais precisamente, para Istambul, o lugar onde Orhan Pamuk nasceu.
Com o autor, tomando goles de Boza — bebida típica turca, feita a partir de trigo fermentado —, andei por Istambul de 1969 a 2012, conhecendo ruas, casas, lojas, formas de organização, e conversei com vendedores de boza, sorvete, iogurte, arroz, grão-de-bico e também com comerciantes modernos.
Acompanhei os fatos importantes que ocorreram no mundo, nesse período, visto pelos olhos daqueles que ajudaram a construir a atual Istambul.
“Uma sensação estranha” é a história da vida e dos sonhos de Mevlut Karatas, vendedor de boza e iogurte. Nascido em 1957 na fronteira ocidental da Ásia, numa aldeia pobre que dava para um lago enevoado da Anatólia Central, aos 12 anos foi para Istambul, a capital do mundo, onde passou o resto da vida. Quando tinha 25 anos, voltou para a província natal e de lá fugiu com uma jovem, num estranho episódio que determinou o curso de seus dias. Voltou para Istambul, casou-se, teve duas filhas e se pôs a trabalhar sem descanso – vendeu iogurte, sorvete e arroz como ambulante, e exerceu o ofício de garçom. Mas à noite nunca deixou de perambular pelas ruas de Istambul, vendendo boza e sonhando sonhos estranhos — ‘andar pela cidade à noite o fazia sentir como se estivesse andando dentro da própria mente’. Nosso herói Mevlut era bem-apessoado, alto, forte…”
Misto de documento histórico e memória pessoal, o livro é uma declaração à cidade, aos seus monumentos e minaretes, às construções históricas, ao estreito de Bósforo — que nunca se esqueceu de seu principal herói, Atatürke — aos seus dias de glória, quase invisíveis sob a bruma da decadência e da sujeira: cada personagem do livro conta uma parte da história de Istambul.
Com a maestria que lhe garantiu o Nobel de literatura, Pamuk pinta um quadro brilhante da vida entre os recém-chegados que transformaram a cidade ao longo dos últimos cinquenta anos, hoje com aproximadamente 15 milhões de habitantes: “com edifícios mais altos, mais assustadores e com mais concreto do que nunca”.
Enfim, “Uma sensação estranha” é um romance de amor que termina com a frase que Mevlut queria dizer a Istambul e escrever nas paredes: “Eu amei Rayiha mais do que tudo neste mundo”.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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