KADAFI, FACEBOOK E AK-47
“Foi a primeira vez em minha vida que fui tomado pela vergonha de ser brasileiro”.
Andrei Netto
Ao final das trezentas e sessenta e três páginas de O Silêncio contra Muammar Kadafi, do repórter Andrei Netto — que tem como objetivo recontar a revolução e desconstruir a versão de Kadafi, segundo a qual o povo líbio não apenas apoiava seu regime como o amava — continuo ouvindo tiros de Ak-47 e os gritos de Allah Akbar ! Misrata ! Allah Akbar ! , tendo na mente a imagem sangrando em abundância, do ditador que tombara porque suas pernas tinham fraquejado alguns passos depois de ele ter sido apunhalado repetidas vezes por um sádico, por trás, da pior maneira possível, no pior lugar possível: no ânus.
No mesmo país em que relata o autor: “Era a primeira vez que eu ouvia um oposicionista defender em público a intervenção militar ocidental na revolução. Ouvir de um líbio muçulmano armado um apelo ao poderio militar dos Estados Unidos no mundo árabe foi no mínimo surpreendente. Ao logo de décadas, criara-se no exterior a idéia de que os líbios não só sustentavam o regime de Kadafi como apoiavam o terrorismo contra o Ocidente. O que eu constatava ali era que não apenas a ditadura do “coronel” era odiada na Líbia profunda, como os americanos não eram um demônio, mas, para alguns, a salvação” lemos, infelizmente, sobre o momento em que : “ Lula cumprimentou Kadafi e passou ao plenário da assembléia, onde aconteceria o congresso da União Africana. A prova de prestígio veio em seu discurso, no qual demonstrou intimidade fraterna com o anfitrião, a quem chamou de “ meu amigo, meu irmão e líder”. Foi a primeira vez em minha vida que fui tomado pela vergonha de ser brasileiro”.
Outro fato importante no livro fica por conta da postura da juventude num momento difícil do país: “Quando o questionei sobre a presença de tantos adolescentes, como seu filho, nas zonas de guerra, Mohamed lamentou as perdas e os feridos, mas disse nunca ter visto gente tão corajosa quanto os jovens líbios, até então menosprezados pelas músicas que ouviam, por seus cabelos modernos, pelas calças caídas e seu estilo tão ocidental”.
É preciso destacar o papel da internet, como arma de resistência, durante o conflito: “Em Zintan, como ocorrera na Tunísia e no Egito, o Facebook tornara-se arma de mobilização, de propaganda e de guerra — e das mais eficientes, por romper a espiral de silêncio imposta pelo regime “ ou então : “Em 24 de janeiro de 2011, o site de compartilhamento de vídeos You Tube foi bloqueado na Líbia, um modo de impedir a divulgação de imagens de virtuais protestos, como acontecera nos dois países vizinhos”, e ainda: “Em resposta, jovens e adultos que apoiavam sua causa foram às ruas da cidade para protestar contra a prisão, precipitando as manifestações que já vinham sendo discutidas em fóruns e redes sociais na internet e nos círculos oposicionistas da cidade. Terbil seria libertado no dia seguinte, 16 de fevereiro”.
E para finalizar, a divulgação da grande farsa do regime de Kadafi: “E contei então que, durante a apuração dessa reportagem, havia sido surpreendido pela informação de que Hanna Kadafi, filha adotiva do ditador, que o mundo acreditava ter morrido, ainda bebê, durante os bombardeios dos Estados Unidos a Trípoli em 1986, não apenas estava viva como dirigia informalmente o hospital. Ambos sorriram e confirmaram: era verdade”.
Enfim, esse livro de Andrei Netto nos permite entrar clandestinamente, na Líbia, a serviço do jornal O Estado de São Paulo, para cobrir, com ele — num dos lugares mais hostis e vigiados do planeta — a primeira revolução armada da Primavera Árabe.
O Silêncio contra Muammar Kadafi é um livro impactante, repleto de episódios dignos de um thiller de aventura, constituindo um lúcido relato de experiências humanas e profissionais em território líbio ao longo da guerra revolucionária que matou mais de 20 mil pessoas: entre setembro de 1969 a 20 de outubro de 2011.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br