ARTIGO: UMA VELA PARA JOSÉ AUGUSTO

 

UMA VELA PARA JOSÉ AUGUSTO

“Um homem morreu na sexta-feira, 13.12.24, enquanto aguardava atendimento na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Cidade de Deus, na zona oeste do Rio. Nas redes sociais, circulam vídeos que mostram o paciente, desfalecido nas cadeiras da unidade”.

 

A literatura muitas vezes funciona como um espelho da realidade, revelando os detalhes mais sombrios e brutais da condição humana. Em um conto de Dalton Trevisan, Uma Vela Para Dario, publicado no livro 33 – Contos Escolhidos, Editora Record, o personagem Dario morre em condições que simbolizam o abandono e a impotência diante de uma sociedade indiferente.

A mesma sensação de descaso ressoa na morte recente de José Augusto, que perdeu a vida enquanto aguardava atendimento médico na UPA da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro.

Apesar de ocorrerem em contextos distintos – a ficção de Trevisan e a realidade brasileira – as duas mortes convergem em um ponto crucial: ambas são um retrato do colapso das redes de cuidado, sejam elas pessoais ou institucionais.

No conto de Dalton Trevisan, Dario é um personagem que morre só, em meio a um cenário que sugere abandono emocional e social. Sua morte é descrita de forma crua, sem glamour ou heroísmo, destacando a solidão de um indivíduo que parece ter sido esquecido pela sociedade. Trevisan utiliza uma linguagem econômica, mas poderosa, para expor como a desconexão humana pode ser tão fatal quanto a ausência de cuidados médicos. Dario não é apenas uma vítima de sua condição de saúde; ele é uma vítima de um sistema social que fracassa em oferecer suporte em momentos críticos.

José Augusto, por sua vez, simboliza a precariedade do sistema de saúde brasileiro. Ele passou horas na sala de espera da UPA, em uma cadeira de rodas, sem receber o atendimento necessário. Sua morte ocorreu em um espaço que deveria ser dedicado à cura, mas que se tornou, para ele, um local de sofrimento e negligência. As circunstâncias que envolveram seu falecimento foram denunciadas por outros pacientes, que relataram a demora no atendimento e a falta de empatia dos profissionais de saúde: vinte deles foram demitidos após o corrido.

Assim como Dario, José Augusto não morreu apenas por causas biológicas; sua morte foi potencializada por um sistema que o deixou à margem. Sua condição reflete não apenas a falência do serviço público de saúde, mas também o impacto de um sistema que trata a vida humana como algo descartável.

A morte de Dario e a de José Augusto são marcadas pelo abandono. No caso do primeiro, é um abandono emocional e social, típico das narrativas intimistas de Trevisan, que evidenciam a solidão humana em ambientes urbanos. Já no caso de José Augusto, é o abandono institucional, fruto de uma estrutura que falha em cumprir seu papel básico de garantir dignidade aos cidadãos.

Ambos os casos levantam uma questão essencial: de quem é a responsabilidade pela vida? A literatura aponta para a falha nas relações humanas, enquanto a realidade escancara a omissão do Estado. No entanto, o pano de fundo é o mesmo – uma sociedade que se acostumou a assistir à morte alheia com indiferença.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras
www.tortoro.com.br
ancartor@yahoo.com

 

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