WOLAND PASSOU POR RIBEIRÃO
“…quem és, afinal ?
— Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem”
Fausto, Goethe
Quando abri os jornais de Ribeirão Preto no dia oito de outubro e li a notícia sobre o incêndio na antiga fábrica de tecidos Cianê-Matarazzo, nos Campos Elíseos, zona Norte, pensei comigo: Woland e seus amigos passaram por Ribeirão disfarçados de usuários de drogas.
Fiquei imaginando Korôviev e Behemoth com seu fogareiro debaixo do braço, ateando fogo em mais um prédio, agora não mais em Moscou, mas nos amplos, abandonados e empoeirados galpões da Cianê, cenário de diversos ensaios fotográficos, inclusive com mulheres nuas — num dos quais participei como diretor e fotógrafo do Grupo Amigos da Fotografia em 2010 — como Margarida, a do Mestre, personagem de Mikhail Bulgákov em O Mestre a Margarida.
“ — Não se mexam ! — E de uma vez todos abriram fogo na varanda, apontando para a cabeça de Korôviev e de Behemoth. Os dois, no mesmo instante, desapareceram no ar, e do fogareiro explodiu uma coluna de chamas em direção à tenda. Na tenda surgiu algo como uma bocarra brilhante com as bordas negras que começou a se espalhar para todos os lados. O fogo passou por ela e subiu até o telhado da casa de Griboiêdov. As pastas e papéis que estavam sobre o batente da janela do segundo andar na sala da redação incendiaram-se, depois foi a vez da cortina. Então o fogo, rugindo, como se alguém o estivesse atiçando, passou em colunas para dentro da casa da tia. Alguns segundos depois, pelas trilhas de asfalto que levavam até a cerca de ferro do bulevar, de onde, na quarta-feira à noite viera o primeiro informante da infelicidade de Ivanuchka, agora corriam os escritores que não tinham terminado de almoçar, os garçons, Sófia Pavlovna, Boba, Petrakova, Petrakov”.
Assim Woland (Satanás, surgido numa primavera quente de Moscou) e seus amigos Korôviev (um homem de roupas apertadas e monóculo rachado), o enorme gato negro Behemoth ( adepto do xadrez, da vodca e das armas de fogo ) , Azazello (ruivo vermelho-fogo, manco, chapéu coco, canino à mostra) , Abadona e Hella (feiticeira nua de ardentes olhos fosforescentes) , ingressam nos círculos literários locais, e entre diversos despropósitos, permeados por sabás de feiticeiras num perpétuo carnaval, permitem ao romancista satirizar o comunismo e a ideia de uma sociedade perfeita, pondo em xeque toda a condição humana, fazendo lembrar Salman Rushdie em seu Os Versos Satânicos.
Da mesma forma que a Casa dos escritores, o Teatro de Variedades, e a Massolit (abreviação em estilo soviético para a sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para massas), o prédio da Cianê, que estava reservado para fins culturais — um museu, biblioteca e arquivo municipal — acabou incendiado, destruído.
Mas salva-se de todos esses incêndios o romance do Mestre, “até porque os manuscritos não queimam” — graças à Margarida Nikolaievna, sua amante — cujos trechos entremeiam o livro contando a história de Pilatos, o Procurador da Judeia, no momento em que conhece Jesha Há-Nozri, e nos dias seguintes à sua condenação.
Enfim, O Mestre e Margarida , segundo o The New York Times, é um romance revolucionário, com uma narrativa brilhante que vai muito além de seus aspectos fantásticos e cômicos. É um livro com estilo absolutamente original, sobre a liberdade da escrita e a força do amor em tempos adversos. É uma sátira devastadora da vida sob o regime soviético, da censura e da repressão. É também um romance que traça de forma genial os múltiplos personagens de Moscou e seu cotidiano — com apartamentos divididos por inúmeras famílias, pessoas que desaparecem misteriosamente, burocratas obtusos. É, segundo alguns críticos, um dos livros mais importantes e cultuados do século XX.
Quanto ao ocorrido com a Cianê, é reconfortante pensar : o que pode parecer mal, quem sabe não será um bem ?