LI E GOSTEI : VERGONHA

SUFIYA ZINOBIA: PERSONIFICAÇÃO DA NOSSA REALIDADE

“Essa oposição — o epicurista contra o puritano —       é, diz-nos a peça, a verdadeira dialética da história”

Salman Rushdie

Ao ler na mídia que bombeiros ( heróis) são encarcerados, Battisti (assassino internacional)  é libertado pelo STF, um advogado afirma que bandido tem ética profissional  e um assaltante justifica haver matado sua vítima porque ela resistiu — e isso só em uma única semana — não posso deixar de ver essa realidade personificada em Sufiya Zinobia : “…e então ali estava ela, de quatro, nua, coberta de lama, sangue e merda, com gravetos espetados nas costas e besouros no cabelo”.
Sufiya, “heroína da história, o milagre errado”,  é personagem do romance Vergonha, de Salman Rushdie, uma espécie de conto de fadas, que utiliza todas as armas da ficção para reconstruir a história de uma nação (Paquistão) a partir de um sentimento pálido, invisível a olho nu, mas que, encarnado numa besta de olhos amarelos, podem enfim aparecer em toda sua virulência.
Em 1983, quando Salman publicou esse livro, um crítico do New York Times conjeturou: É possível que o leitor se pergunte o que o Paquistão e os personagens de Vergonha fizeram para merecer tamanha desgraça”. E eu pergunto: o que nós, brasileiros, fizemos para merecer tamanho desrespeito por parte de nossas instituições ?
Mas realidade nacional à parte, Vergonha — Companhia das Letras, 370 páginas, tradução de José Rubens Siqueira — traduz, com o estilo fantástico de Salman Rushdie ( para mim um dos maiores escritores da atualidade) a formação de um país em palavras, recontando a história do Paquistão desde sua separação da Índia, em 1947. O livro cobre três gerações das famílias de dois homens que disputam o poder de uma nação recém criada ( o general Raza Hyder e seu primo Iskander Harappa, um ex-milionário que se torna político).
Trata-se de um país sem nome definido, mas com uma história de violência comum às ex-colônias inglesas, cujos governos autoritários e truculentos dissolveram os sonhos de paz e união nacional: “um governo que ama a sua gente tanto, que fez do tesão a prioridade nacional, um governo que fica contente em foder com a gente até o fim do mundo”.
Alheia ao palco onde essa batalha se arrasta, uma menina frágil ruboriza de maneira anormal: “Mas ela também, acredito, enrubesce pelo mundo”, um rubor tão incandescente que queima os lábios de quem a beija e as mãos de quem a toca. Rejeitada pelo pai, um eminente oficial do Exército que promove o primeiro golpe de Estado do país, Sufiya Zinobia não é capaz de compreender o seu entorno, internalizando apenas um sentimento corrosivo que se aplica, em parte, pela palavra “vergonha” — uma palavra curta, mas que contém enciclopédias de nuances. As emoções proibidas de um povo oprimido pela religião, pela ideologia e pelos dogmas ancestrais dos bons costumes, são catalisadas na moça, que se torna um ser sobrenatural e encontra na violência a sua forma de expressão.
Para quem aprecia uma boa  leitura  e deseja fugir por algumas horas da indignação causada pelas notícias locais,  é uma ótima oportunidade passar momentos inesquecíveis com personagens fantasticamente humanos: Iskander, Rani, Arjumand ( virgem Calça de Ferro) , Haroun, Raza, Bilquis, Dawood (santo local) , Navid, Talvar (jogador de polo), Shahbanou, Sufiya , Omar Khayyam (tonto, periférico, invertido, apaixonado, insone, observador das estrelas, gordo: o anti herói).

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11128-1

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