FALSO MAR, FALSO MUNDO, FALSA VIDA

No final da década de cinquenta, um garoto que, todo final de tarde,  esperava pelo carrinho da Kibon, numa esquina da Vila Seixas, era eu.
Ansioso, aguardava, com uma moeda nas mãos, que o sorveteiro, um negro , alto e de sorriso simpático, surgisse do nada e percorresse os  trezentos ou quatrocentos metros de uma Florêncio de Abreu ainda com pouquíssimo movimento de automóveis.
Às vezes, não resistindo à espera, eu corria ao encontro do carrinho, comprava meu Chicabon e vinha empurrando o carrinho rua acima, até chegar à Olavo Bilac.
O que contava era a emoção da primeira mordida, que, arrancada a lasca de sorvete, deixava à mostra a ponta do palito que poderia estar ou não premiado.
O primeiro sinal de que teria direito a outro sorvete era a marca redonda, amarronzada, do tamanho da cabeça de um prego, colocada na ponta do palito. Vislumbrado a marca, o restante do sorvete era degustado com calma, já com olhos em outro que viria a seguir.
Bons tempos aqueles em que eu era imortal.
Hoje o garoto continua vivo em mim, mas, quando olho no espelho me lembro de uma crônica de Raquel de Queiroz , Não aconselho envelhecer, do livro Falso mar, falso mundo : “Você  contempla no espelho, vê as rugas do seu rosto, do seu pescoço, como se olhasse uma máscara que se desfaz. Vê bem, sabe com está velho, embora não sinta que está velho. Sua alma, seus sentimentos , sua cabeça, nada disso confirma a palavra ou a imagem do espelho. Mas os outros só veem de você o que o espelho vê”.
E, o menino que insiste em sobreviver em mim após sessenta anos, começa pensar num sorvete de Rivotril.
E por falar em Rivotril, lembrei-me de uma crônica  de Fernanda Torres, na Folha, em que ela menciona o conselho dado a ela por seu amigo de setenta e quatro anos, Domingos Oliveira: “Finja ! Crie um personagem e finja ser ele. Quem enfrenta a realidade enlouquece, a única saída para a sanidade é uma dose de alienação. A arte é a única saída possível”.  Fernanda termina seu artigo dizendo que resolveu seu problema indo para Fernando de Noronha onde encontrou a paz no mar, nos bichos marinhos, no sol e na natureza agreste do lugar.
Como não cabe em meu bolso essa viagem ao paraíso, resolvi meu problema:  abri a geladeira, peguei um sorvete de chocolate da Nestlé, fechei meus olhos e fiz de conta que era, novamente, uma criança.
E assim, antes de voltar à realidade,  derreti o tempo à beira de um falso mar, e vivi, num falso mundo,  uma falsa vida.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

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