“ Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Livro dos Conselhos – Saramago
Em Uma Solidão Ruidosa, o autor Hrabal nos delicia com o trecho que se segue.
“ Quando leio, não é apenas ler o que eu faço; eu jogo uma linda frase na boca e a chupo como uma bala de fruta, ou a sorvo como licor, até o pensamento se dissolver em mim feito álcool, infundindo-se no cérebro e no coração e atravessando as veias até a raiz de cada vaso sanguíneo”.
Foi o que aconteceu comigo ao ler no Ensaio sobre a cegueira , o instante em que um grupo de cegos encontra água pura para beber, num momento em que toda a humanidade fica cega devido à “treva branca” e se vê reduzida às necessidades de afetos mais básicos, com alimento racionado, um caos generalizado, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem.
“A mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, Aqui tens a água, bebe devagar, devagar, soboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. Onde a encontraste, é água da chuva, perguntou o marido, Não, é do autoclismo, E não tínhamos ainda um garrafão de água quando nos fomos daqui, perguntou ele de novo, a mulher exclamou, Sim, como foi que não me lembrei, um garrafão que estava em meio e outro que nem encetado estava, oh que alegria, não bebas, não bebas mais, isto dizia-o ao rapaz, vamos todos beber água pura, ponho os nossos melhores copos na mesa e vamos beber água pura. Agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava por ele, fazia cintilar a joia que tinha dentro. Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. Bebamos, repetiu a mulher do médico. No centro da mesa, a candeia era como o sol rodeado de astros brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar”.
Esse momento místico agora volta sempre à minha mente quando bebo um copo de água, gesto automático e corriqueiro que eu repetia mecanicamente, diversas vezes ao dia, antes de ler esse licor literário de Saramago que sorvi, e que se infundiu no meu cérebro e coração, atravessou minhas veias e tomou conta de cada um dos meus vasos sanguíneos.
Esse momento me volta à mente como um dolorido grito de alerta, todas as vezes em que presencio o desperdício de água, seja quando alguém lava calçadas ou o automóvel com água tratada com cloro, ou deixa a torneia aberta enquanto escova os dentes ou se ensaboa no banho, quando passo por alguma rua ou avenida em que um vazamento deixa esvair-se tão precioso e sagrado líquido.
É preciso que cuidemos com carinho de nosso Aquífero Guarani, um dos maiores mananciais de água doce do mundo, que repousa aos nossos pés, mas que finito, um dia esgotado, poderá nos levar, na realidade, num futuro bem próximo, a muitos momentos iguais aos vividos pelos personagens de Ensaio sobre a cegueira.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO