“Também do chão pode levantar-se um livro, como uma espiga de trigo ou uma flor brava.”
José Saramago
A mídia repercutiu, recentemente, como sempre o faz, as palavras do Prêmio Nobel de Literatura – 1998, José Saramago.
O escritor português chamou o Papa Bento XVI de “cínico” e disse que a “insolência reacionária” da Igreja precisa ser combatida com a “insolência da inteligência viva” .
E disse mais, quando esteve presente à capital italiana para divulgar o livro O Caderno : “ que Ratzinger tenha a coragem de invocar a Deus para reforçar seu neomedievalismo universal , um Deus que ele jamais viu, com o qual nunca se sentou para tomar um café, mostra apenas o absoluto cinismo intelectual” desta pessoa.
Controvérsias à parte, ler Saramago é, para mim, sempre uma experiência adoravelmente amarga.
Viver com ele a saga dos Mau-Tempo é viver a vida quase real — não as da nova novela da Globo — de uma família de trabalhadores rurais da região do Alentejo, no sul de Portugal, em cujos limites se passa o romance, desde o começo do século.
Trata-se de uma denúncia vigorosa da exploração do desemprego e da miséria e, ao mesmo tempo, da tomada de consciência política por parte do trabalhador rural: o aprendizado da luta pelo direito ao trabalho, pelas oito horas de jornada e pela posse útil da terra.
Pontuado por acontecimentos históricos de três quartos de século, esse romance consegue tecer um painel da burguesia fundiária ( Lambertos, Albertos, Norbertos, Dagobertos, Bertos …) , à medida que vai compondo a “biografia” dos Mau-Tempo ( Domingos, Lara, João , Joaquim, Sara, Antônio, Faustina, Gracinda , Amélia …) e da própria história de Portugal no século XX.
A família Mau-Tempo faz lembrar a família Buendía , dos Cem Anos de Solidão , de Gabriel Garcia Márquez , e a obra Os Sertões , de Guimarães Rosa, sem que Saramago renegue as suas mais autênticas raízes lusitanas, indo buscar inspiração no que de mais positivo a literatura portuguesa tem produzido ao longo dos séculos.
O padre Agamedes representa, na obra, a Igreja Católica Apostólica Romana e, como tal , é o tempo todo ironizado e criticado duramente por sua postura hipócrita e conivente com os poderosos latifundiários, ficando as beatas representadas na figura de Dona Clemência e a sua distribuição de comida aos pobres, às quartas e sábados.
O chefe quadrilheiro, José Gato, é comparado ao nosso Lampião ( pag. 126) e o calvário de Germano Santos Vidigal parece homenagear a todos os torturados pelas ditaduras do mundo, inclusive os torturados pelo regime militar durante a década de sessenta/setenta , no Brasil: imagens terríveis testemunhadas por formigas que levantam o nariz , como cães.
João Calvedo , inspetor Paveia , algozes de João Mau-Tempo e representantes do DOI-CODI lusitano de Saramago, contrastam em atitude com o gesto cristão do casal Ricardo Reis e Ermelinda , na acolhida ao João comunista, que paga pelo preço de ter-se encontrado com Manuel Dias da Costa, líder revolucionário que viaja de bicicleta, e por ser amigo de Sigismundo Canastro.
Enfim , como afirma Saramago, esse livro é um simples romance, com gente, conflitos, alguns amores, muitos sacrifícios e grande fomes, as vitórias e os desastres, a aprendizagem da transformação, e mortes. É um livro que quer aproximar-se da vida, e essa seria sua mais merecida explicação.
São trezentas e sessenta e cinco páginas, uma para cada dia do ano, e que fazem sonhar um mundo melhor.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO