Parado num ponto de ônibus, numa das raras vezes em que tive a necessidade de — por estar meu automóvel fazendo uma revisão programada — usar um desses veículos públicos, ouvi de uma senhora bem vestida, de classe média alta, um comentário sobre o ocorrido no colégio da filha.
Ela estava indignada pelo fato de terem permitido a entrada, durante o recreio escolar de sua filha , de um grupo de jovens ligados a uma empresa de modelos, a Ford Models Brasil, para divulgarem o dia de inscrições de novas candidatas a Gisele Bündchen.
Ela não compreendia como podia , uma escola, permitir que esse “tipo de gente” fizesse a cabeça dos jovens adolescentes, sem que os pais fossem consultados com antecedência. Dizia ainda que a filha, já convicta por dedicar-se à carreira de estilista, sentiu-se abalada com a possibilidade de vir a ser modelo.
Fiquei pensando : será que aquela senhora sabe que estilista é aquele que dita moda e cria coleções de roupas e acessórios, exercendo forte influência sobre a maneira como as pessoas se vestem ? Será que ela sabe que ser estilista, não é apenas ser desenhista de moda, e sim criar vestuário adequado a cada tipo de pessoa ?
Enfim, será que aquela senhora sabe que precisará do digno e quase regulamentado trabalho desse “ tipo de gente” para que a filha dela possa, no futuro, mostrar suas criações ?
Conta Millôr Fernandes que : “ Garcia Márquez mais uma vez foi visitar Fidel. Com carinho tece-lhe elogios, minuciosos e excessivos . É isso aí — intelectuais não resistem a um ditador. Raramente tomam o poder. Mas gostam de ser valet de chambre , criados de quarto. Adoram um boquete ideológico”.
Nossa sociedade , em geral, parece adorar a referida prática ideológica, pois vejamos:
Pagam em euros e/ou dólares para estarem por alguns momentos perto de Gisele Bündchen, lotam espaços onde ocorrem os desfiles de modas para verem o que há de mais moderno e atual em termos de vestir-se bem, compram revistas e assistem na TV a programas que entrevistam ou contam particularidades do dia a dia desse “tipo de gente” : enfim , sonham poder estar, ou ver alguém da família, estar nesse meio de glamour e fartura.
Será que na cabeça daquela senhora desavisada, ser modelo rica pode — ela deve comprar a revista Caras todos os meses — mas saber como ingressar na carreira , não pode ?
Ou será que a filha dos outros pode inscrever-se “nessas bobagens “ , mas a dela não pode ?
Um recado a essa cara senhora: uma escola tem o dever e a obrigação de abrir suas portas — desde que isso não implique perder momentos de aula efetiva — para qualquer que seja a possibilidade de uma profissão futura de seus educandos: qualquer profissão é digna , desde que exercida para o bem do próximo e em favor do progresso da sociedade.
Excluir qualquer tipo de atividade permitida por lei é, no mínimo, prática nazista: …Primeiro eles vieram atrás dos comunistas e eu não disse nada porque não era comunista. A seguir vieram atrás dos judeus e eu não disse nada porque não era judeu. Depois vieram atrás dos católicos e eu não disse nada porque nunca o fui. Quando vieram atrás de mim já não havia ninguém para falar em minha defesa – Martin Niemöller.
Millôr continua tendo razão.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA:
Esta crônica do Tórtoro está deliciosa, e reflete a hipocrisia de uma sociedade em permanente conflito.
O Mestre envereda, com conhecimento de causa, sobre o espaço democrático que é a escola, e relembra as velhas e carcomidas,espero, práticas nazistas: a quinta-feira está completa.
Corauci Sobrinho – Secretário da Cultura de Ribeirão Preto 2008