A REALIDADE NO QUARTO 603.

SINOS-DOBRAM“Quando morre um homem, morremos todos, pois somos parte da humanidade”.

John Donne

No último dia seis de julho, os sinos da Igreja Santo Antônio dobraram em homenagem ao meu pai, pré-anunciando seu falecimento no dia seguinte: o som irrompeu de hora em hora pelas paredes azulejadas do quarto 603.
Penso que todos os seres, para se considerarem humanos, deveriam passar por pelo menos uma semana, manhã, tarde e noite, dentro de um hospital: um universo de dor, lágrimas, gritos, tosses, choros, mas também de muita troca de gentilezas, carinhos e amabilidades.
Um hospital é onde o homem reconhece a miséria e a grandeza de ser humano: é onde um sorriso vale mais que dólares ou euros.
Um quarto de hospital é um mundo dividido temporariamente por seres que nunca se viram ou trocaram uma palavra sequer mas que, de repente, formam quase um núcleo familiar.
É o espaço em que um jovem repousa inerte, hidrocefálico, olhos quase sempre cerrados dos quais escapam, de tempos em tempos, sorrateiras, lágrimas silentemente ruidosas, tendo ao seu lado um outro jovem adolescente, com sorriso de criança, baleado pela vida, atento às atividades das enfermeiras, e indignando-se diante do sofrimento dos mais idosos presentes no mesmo quarto.
Por sua vez os idosos — um deles meu pai, com noventa e um anos, anemia, pneumonia e uma infecção impiedosa — entre um sono e outro, em geral sob efeito de fortes medicamentos, resmungam, gritam, chamam por familiares, engasgam.
Um outro octogenário, esquálido, cabelos ralos e despenteados, olha para um infinito por entre o plástico de tubos e respiradores artificiais, numa inércia às vezes interrompida por engasgos e gemidos de dor. Nem a presença de sua esposa e filha interrompem o caminhar dele para a morte que se aproxima célere para levá-lo horas depois do encontro de despedida.
Enquanto isso o cenário é permeado por homens e mulheres de branco que entram e saem numa dança frenética: aplicam injeções, verificam soros, levam e trazem bandejas com luvas, sondas, seringas, distribuem comprimidos, atenção e às vezes ignoram apelos menos insistentes. Trocam fraldões, dão banhos, limpam excreções.
Sem anúncio prévio, aquele vale de lágrimas é invadido por um fiel evangélico, ou por senhoras católicas, Bíblia nas mãos, que surgem para distribuir bênçãos e esperanças, mesmo concorrendo com o burburinho que vem dos corredores, ou com o som de veículos que cortam a avenida da Saudade.
Ao lado de cada uma das camas sempre se posta um acompanhante da vez: avó, tio, filho, filha, neta, ou contratados. Eles buscam passar o tempo lendo livros, ouvindo música, fazendo palavras cruzadas enquanto o tempo escorre, gota a gota, pela ampulhetas de sangue, soros e alimentos líquidos.
Enquanto isso os sinos continuam dobrando, lamentando perdas inexoráveis.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

ARTIGOS