“Crença e questionamento caminham juntos. Um nutre o outro.”
Martin Scorsese
Fumi-e é o nome dado a imagens — de Jesus ou Maria — que as autoridades religiosas do shogunato apresentavam aos cristãos para serem pisadas a fim de provarem que haviam apostatado, ou seja, abandonado a fé cristã.
O uso de fumi-e começou com a perseguição de cristãos em Nagasaki, em 1629.Seu uso foi oficialmente abandonado quando as portas foram abertas aos estrangeiros em 13 de abril de 1858.
Em Silêncio — talvez a maior obra literária de Shusaku Endo, escritor do século XX — Sebastião Rodrigues, personagem principal, missionário da Companhia de Jesus, depois de confrontado com a realidade da perseguição religiosa, tem, ele mesmo, de fazer uma escolha terrível: abandonar seu rebanho ou seu Deus: um Deus silencioso.
Tomei conhecimento desse livro ao ler nos jornais um artigo em que o diretor americano Martin Scorsese confessou que, com a gravação de “Silêncio”, um filme — a maior parte foi filmada em Taiwan — baseado no livro de mesmo título, realizava um sonho de mais de 20 anos.
E se Scorsese gostou do livro, possivelmente eu também iria gostar: e gostei, muito.
O Silêncio é a história de um homem que aprende — tão dolorosamente — que o amor divino é mais misterioso do que imagina: que Ele deixa muito mais aos caminhos humanos do que percebemos; e que Ele está sempre presente…mesmo em Seu silêncio.
Do excelente prefácio de Martin Scorsese, feito para o livro, destaco dois pontos principais/fundamentais para entendimento da obra:
Primeiro. O escritor entendeu que, para que o cristianismo viva, adapte-se a outras culturas e a outros momentos históricos, é necessária não apenas a figura de Cristo, mas a figura de Judas.
Segundo. Endo compreendia o conflito da fé, a necessidade de que a crença combatesse a voz da experiência. A voz que sempre insta os crentes — os crentes questionadores — a adaptar a crença ao mundo, à cultura que habitam. O cristianismo se baseia na fé, mas se estudarmos sua história, veremos que ele precisou adaptar-se repetidas vezes, sempre com grande dificuldade, para que a fé florescesse. É um paradoxo, que pode tornar-se extremamente penoso: em face dele, a crença e o questionamento são antitéticos?
Como já senti em momentos difíceis de minha vida esse aparente silêncio divino — e até o Cristo o sentiu: “Eli, Eli, lamá sabactâni ? Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” — posso assegurar que nunca pisei a fumi-e — e nem dei nela “aquele cuspe ofensivo que jamais seria possível remover” — mas diante do fato vivido por Rodrigues — dezenas de pessoas estavam morrendo porque ele decidiu não apostatar — eu teria pisado a fumi-e para salvar vidas pois, afinal de contas — e agora agindo como um cristão questionador, logo, ser pensante — sabemos que imagens não são os próprios Santos.
Inclusive, existe um Ritual Católico de benção de imagens que deixa bem claro: as imagens são simplesmente representações criadas — da mesma forma que fotos que guardamos de entes queridos já falecidos — para que possamos meditar os seus exemplos e imitar as suas virtudes. São feitas para que possamos recordar e honrar Jesus Cristo, Maria e/ou os Santos.
Logo, para salvar vidas, eu pisaria fumie-, eu rasgaria fotos de meus entes mais queridos, agiria como Judas, a fim de que vidas fossem preservadas e a minha religião, realmente, sobrevivesse, e pudesse manter vivos seus princípios: eu não suportaria, sem ação, “a sensação de que, enquanto os homens erguem angustiadamente a voz, Deus permanece de braços cruzados, calado”.
Tenho certeza de que Ele, sempre presente no fundo do meu coração, me diria: pisa!
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
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