AC TÓRTORO: O RELÓGIO DO MEU PAI

 

“Existe uma conivência entre uma fotografia e a morte; ambas fazem o tempo parar, ambas infligem um golpe de misericórdia”.

Roland Barthes

O relógio, depois da morte de meu pai, está em minha casa, sobre a passagem da copa para a nossa sala.
Só consigo alcançá-lo subindo em uma cadeira, com os braços estendidos acima da cabeça. É preciso dar-lhe corda a cada sete dias, a cada cento e sessenta e oito horas. Houve um tempo, ainda na casa de meus pais, em que ele badalava, mas o mecanismo está quebrado. Ele continua a marcar a hora certa quando o peso no pêndulo de latão está bem regulado.
Às vezes eu me esqueço de dar corda. No entanto, quando ele para, o silêncio pouco habitual na copa — onde passamos a maior parte do tempo — atrai minha atenção, e, na ponta dos pés, abro a portinhola e dou corda no mecanismo com a chave que fica guardada num suporte da portinhola, à direita do relógio. Então, com meu indicador, delicadamente empurro o pêndulo para a esquerda (nunca para a direita), acerto o horário girando o ponteiro sempre no sentido horário, e então, o tique-taque recomeça e eu tenho invariavelmente a sensação de que a copa, que estava prendendo a respiração durante o silêncio, está de novo respirando normalmente.
Um aposento precisa ter a consciência da passagem do tempo humano. De outra forma, ele corre o risco de se tornar inanimado. Ou, para ser mais preciso, seu silêncio arrisca-se a tornar-se inanimado. Meu ritual de alcançar o relógio bem acima da minha cabeça é como pôr uma tigela com água no chão para que um silêncio dela beba.
Silêncio com sede são devastadores.
Eu li essa história sobre o relógio de John Berger, no seu livro “Para entender uma fotografia”, um relógio fabricado em Ansonia, Connecticut, no final do século XIX.
O relógio do meu pai é um “artigo para marcação de tempo” da marca Silco.
Com maquinário suísso marca Sorel os relógios Silco foram bem comercializados por várias décadas, e gozou de certo “status” nas décadas de 40 e 50: inclusive os relógios do metrô de SP são dessa marca.
Recentemente, quando meu pai completou 2 anos de morte, andei desenterrando fotos antigas clicadas por ele: foram, em sua memória, divulgadas no meu Facebook, dia 9 de julho.
Segundo Berger, um mundo não fotografado seria como uma casa sem o tempo: câmeras e marcadores de tempo seriam, de algum modo, complementares. Desde seu início, a fotografia tem provocado especulações sobre o tempo. A nostalgia implícita que há em toda fotografia. O tempo parado em sua trajetória. O instante decisivo. Os traços deixados para trás. Sua preocupação não é com o instante, mas com o passado e o futuro.
No capítulo do livro “Entre o aqui e o então”, temos: “Deter o passado e o futuro pode, no entanto, ser um caminho para entrar momentaneamente na eternidade. O contrário do eterno não é o efêmero, mas o esquecido”.
No relógio na parede e nas suas fotos, meu pai continua vivo por não ter sido esquecido.
O relógio continua badalando.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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