NA BERGGASSE 19 COM FREUD
“Recomendo calorosamente a Gestapo a qualquer um”
Freud: em documento exigido pelos nazistas para autorização de sua saída de Viena.
Na década de sessenta fui assíduo visitante da Biblioteca Altino Arantes.
Todos os dias, após as aulas, eu saía do Colégio Estadual Otoniel Mota e me dirigia para o centro da cidade, a fim de escolher mais um livro em companhia do qual eu me permitia conhecer mundos impossíveis para a realidade econômica de um modesto filho de comerciário.
E foi nas antigas prateleiras que um dia encontrei Freud, Sigmund Freud, e devorei em poucos dias A interpretação dos sonhos.
Depois vieram Totem e tabu, O Ego e o Id, e outros mais.
Agora, já nos meus mais de sessenta anos, minha irmão deu-me de presente de aniversário, A fuga de Freud, de David Cohen: e assim pude passar alguns dias em Viena com o psicanalista da Bergasse 19 , na década de 30, sentindo com ele os incômodos e as dores de um câncer bucal , e ao lado dele ouvir seu último suspiro por volta da meia-noite do dia 23 de setembro de 1939, em Hampstead.
Vivi ao lado da governanta Paula Fichtl as rotinas de Freud e Martha, sua esposa.
Conheci Anna , sua filha, e a grande amiga, Princesa Marie Bonaparte, bisneta de Napoleão, um relacionamento vital no fim da vida de Freud, que acompanhou de perto os últimos anos de angústia da família sob o domínio antissemítico do nazismo; e participei das diversas discussões sobre os rumos da psicanálise com Carl Jung, Wilhelm Reich, Ernest Jones, Otto Fenichel.
Acompanhei de perto as considerações de Freud sobre Moisés , segundo ele, um egípcio, e a teoria de que o triunfo do cristianismo era uma nova vitória dos sacerdotes de Amun sobre o deus superior de Akhenaton, depois de um intervalo de 1.500 anos, indispondo praticamente todos os religiosos contra ele, para escrever seu Moisés e o monoteísmo.
Ouvi de Freud suas considerações psicanalíticas sobre o presidente norte-americano, Woodrow Wilson e sua culpa sobre o que ocorreu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial : “ a profunda feminilidade (de Wilson) subjacente de sua natureza começava a controlá-lo e ele constatava que não queria enfrentá-los com força. Queria fazer-lhes ( a Clemenceau e Lloyd George) sermões “.
Fiquei frustrado ao saber que os alemães, Eichmann e Hagen, numa tentativa de retirar judeus da Alemanha, viajaram até Londres e lá deram-se conta de que os britânicos jamais permitiriam a entrada de centenas de milhares de judeus na Palestina, de modo que sequer chegou a ser levado em consideração um plano que poderia ter salvo milhões de vidas.
Com Freud e sua família, às 2h45 da manhã do dia 4 de junho, fugindo da Alemanha, no Orient Express chegamos à fronteira da Alemanha com a França: “Ao cruzarem o Reno, o alívio foi enorme. Freud escreveu em seu diário: “Passada a ponte do Reno, estávamos livres”. Anna abriu o vermute e brindamos à fuga.
Mas o mais importante é que conheci o Treuehandler (Comissário) , Anton Sauerwald, responsável nazista pelos negócios da família, o homem que, inexplicavelmente, salvou Freud, e que, posteriormente, no último momento, foi salvo dos processos contra os nazistas, em 1947, por intervenção de Anna, filha de Freud.