LI E GOSTEI: A TRÉGUA

LEVANTEM : “WSTAVACH”

“…eu sentia o número tatuado no braço queimando como uma chaga”.

Primo Levi

Nos últimos tempos tenho sentido uma angústia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina, a mesma sensação que tomou conta de Primo Levi ao voltar de Auschwitz.
E nesses momentos alguns livros me fazem mal, mas não consigo deixar de ler.
A trégua é um deles: Companhia das Letras, 215 páginas.
A partir da experiência de prisioneiro e sobrevivente do campo de extermínio (Lager) de Auschwitz, Primo Levi inscreveu seu nome entre os maiores escritores do século XX. Sua prosa literária tem a força expressiva das narrativas em que a voz da testemunha alia-se ao trabalho da memória e da recriação da vida nos limites máximos da dor e da destruição.
Nesse romance autobiográfico, Levi (Turim, 1919-87) narra a longa e incrível viagem da liberação de Auschwitz. Numa Europa semidestruída, o autor e vários companheiros de estrada viajam sem destino pelo Leste até a União Soviética, premidos entre as ruínas da maior de todas as guerras e o absurdo da burocracia dos vencedores.
Ainda em território soviético, 15 de setembro de 1945,  terminada a Segunda Guerra Mundial, finda uma  trégua — vinte meses transcorridos, embora duros, de vagabundagem às margens da civilização, pareciam agora uma trégua, um parêntese de ilimitada disponibilidade, um dom providencial, embora irrepetível, do destino — Levi fala do sentimento que o envolveu no momento da partida para a Itália: “Quando a partida ficou acertada, percebemos, para nossa surpresa, que aquela terra sem fim (Stáryie Doróghi) , aqueles campos e bosques, onde se desenrolara a guerra, aos quais devíamos a própria salvação, aqueles horizontes intactos e primordiais, aquela gente vigorosa e amante da vida, pertenciam ao nosso coração, penetraram em nós e permaneceram longamente imagens gloriosas e vivas de uma estação única em nossa existência . Na longa noite de vigília, ouviam-se cantos tênues e modulados dos pastores. Um cantava, o segundo respondia, a quilômetros de distância, depois outro, e mais outro, de todos os pontos do horizonte, e era como se a própria Terra cantasse”.
E essa ambigüidade de sentimentos, ao final de terríveis sofrimentos levam o autor— “sentado à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho, ou no campo verdejante, num ambiente, afinal, plácido e livre, aparentemente desprovido de tensão e sofrimento”— à amarga e inesperada conclusão : “ Tudo agora tornou-se caos: estou só no centro de um nada turvo e cinzento. E, de repente, sei o que isso significa, e sei também que sempre soube disso: estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. De resto, eram férias breves, o engano dos sentidos, um sonho: a família, a natureza em flor, a casa. Agora esse sonho interno, o sonho de paz, terminou, e no sonho externo, que prossegue gélido, ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosas, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantem, “Wstavach”.
Auschwitz é aqui, onde a realidade queima como uma chaga.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11943-1

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