COMPAIXÃO E CHOPE
“O inimigo é o único que nos dá essa oportunidade de ouro (de testarmos nossa força interior) ”
Shantideva
Um dia ouvi do filósofo e educador Rubem Alves que as pessoas acabam gostando de chope e cerveja e bebendo-os apesar de amargos, por presenciarem, diariamente, indivíduos sorvendo, com ares de prazer, o encorpado líquido, de preferência com “colarinho”: isso para reforçar a tese de que, quando o professor gosta da disciplina que leciona — mesmo que seja Matemática ou Física — ela se torna atraente para quem assiste a suas aulas.
Parece-me que a prática da compaixão e da paciência funcionam da mesma forma: ouvindo Dalai-Lama discorrer sobre o assunto, chega a nos parecer fácil e prazeroso aplicar seus ensinamentos no cotidiano, quando deparamos com nossos (amargos) inimigos.
Essas são , para mim, humano e imperfeito mortal, duas situações igualmente amargas, mas que parecem dar prazer a quem, depois de um certo tempo, as exercita.
No livro A Vida de Compaixão, Dalai-Lama, no capítulo Amigos e Inimigos, destaca: “ Devo assinalar mais uma vez que simplesmente pensar que a compaixão, a razão e a paciência são boas não será suficiente para desenvolvê-las. Devemos esperar que surjam dificuldades e então tentar praticá-las. E quem cria essas oportunidades ? Não os nossos amigos, é claro, mas os nossos inimigos. São eles que nos dão mais trabalho. Então, se realmente quisermos aprender, deveremos considerar nosso inimigos os nossos maiores professores ! Para alguém que valorize a compaixão e o amor, a prática da paciência é essencial, e para isso os inimigos são indispensáveis. Assim, deveríamos ser gratos a nossos inimigos, pois são eles quem mais pode nos ajudar a desenvolver uma mente tranquila ! Além disso, tanto na vida pessoal quanto na vida pública, muitas vezes uma mudança de circunstâncias transforma inimigos em amigos”.
Como educador, trabalho diariamente no contato com pessoas, desde crianças até idosos, e não são incomuns as mais diversas situações em que me vejo tentado — diante da agressividade, intolerância, desrespeito, falta de bom senso, amargor e outras atitudes tão comuns no mundo de hoje — por alguns dos oitenta e quatro mil pensamentos negativos e destrutivos mencionados na escrituras budistas: mas preciso, por uma questão de valores e por força da profissão, buscar alguns dos oitenta e quatro mil antídotos correspondentes.
Posso garantir que engolir o amargo do chope, obviamente bem gelado, exige bem menos sacrifícios.
Apesar de saber que Shantideva afirma: “ mesmo se todas as pessoas do mundo se opusessem a você como seus inimigos e o prejudicassem, contanto que sua própria mente estivesse disciplinada e calma, não seriam capazes de perturbar sua paz” , é quase impossível, não levar para casa, um dia ou outro, uma sensação terrível de impotência, quando um caso faz surgir em nossa mente uma situação com poder de perturbar nossa paz e estabilidade interiores.
Enfim foi prazerosa e nada amarga a experiência de ouvir falar o sempre humilde, porém infinitamente inspirado, Dalai-Lama, nas 126 páginas de seu livro sobre a natureza da compaixão e sobre o procedimento para treinar a mente e cultivar a compaixão.