LI E GOSTEI : O CEMITÉRIO DE PRAGA

O CEMITÉRIO DE PRAGA  : UM TRATADO SOBRE O MECANISMO DO ÓDIO

“O ódio é a verdadeira paixão primordial – o ódio une os povos, desperta a esperança nos miseráveis e solidifica o poder instituído – seja o ódio aos judeus, aos maçons, aos estrangeiros…”
Simonini

Simone Simonini, sexagenário, perverso, perigoso, traiçoeiro, às vezes estúpido — nascido em Turim, de pai turinês e mãe francesa (ou saboiana, quando ela nasceu, a Saboia havia sido invadida pelos franceses),  “ um senhor com a virtude de multiplicar originais”, “sessenta e sete anos feitos mas bem conservados (gordo o bastante para ser considerado aquilo que chamam um belo homem)” , personagem  que não ama ninguém, de O Cemitério de Praga, romance de Umberto Eco, situado no final do século XIX,.
“Quem amo? Não me vêm à mente rostos amados. Sei que amo a boa cozinha: a culinária sempre me satisfez mais que sexo”.
“Quem odeio ? Os judeus, me ocorreria dizer, mas o fato de eu estar cedendo tão servilmente às instigações daquele doutor austríaco ( ou alemão ) sugere que não tenho nada contra os malditos judeus”.
“Os alemães eu conheci, e até trabalhei com eles:o mais baixo nível concebível de humanidade”.
“Desde que me tornei francês ( e já o era pela metade, pelo lado materno)compreendi quanto meus novos compatriotas são preguiçosos, trapaceiros, rancorosos, ciumentos, orgulhosos além de todos os limites,a ponto de pensarem que quem não é francês é um selvagem, e incapazes de aceitar criticas”.
“O italiano é inconfiável, mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o fármaco, escorregadio nas negociações…”.
“Os padres…Que nojo. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. Os piores de todos são certamente os jesuítas: maçons vestidos de mulher”.
“Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas”.
Dos maçons : “ Quanto à moralidade, fala-se muitíssimo dela, mas ainda no ano passado o orador do Grande Colégio dos Ritos era proprietário de um bordel na Chaussée d’Antin, e um dos Trinta e Três mais influentes em Paris é um espião, ou melhor, o chefe de um escritório de espiões, o que dá no mesmo”.
O Cemitério de Praga é um romance histórico interessantíssimo, que tem como pano de fundo Turim, Palermo e Paris e conta fatos que envolvem uma satanista histérica, um abade que morre duas vezes, alguns cadáveres no esgoto parisiense, um garibaldino que se chama Ippolito Nievo, desaparecido no mar nas proximidades de Stromboli, o falso bordereau de Dreyfus para a embaixada alemã,a disseminação gradual da falsificação conhecida como Protocolos dos Sábios de Sião  ( que serviriam de inspiração a Hitler para criar os campos de concentração ), jesuítas que tramam contra maçons, carbonários e mazzinianos que estrangulam padres com as tripas das próprias vítimas, um Garibaldi de pernas tortas, os planos dos serviços secretos piemonteses, franceses, prussianos e russos, os massacres numa Paris da Comuna em que se comem ratos, golpes de punhal, horrendas e fétidas reuniões por parte de criminosos que, entre doses de absinto, planejam explosões e revoltas de rua, barbas falsas, falsos notários, testamentos enganosos, irmandades diabólicas e missas negras.
Enfim, é nesse caldo de ódio a tudo e a todos que Umberto Eco faz com seu romance ( lançado no Brasil pela Editora Record, 480 páginas),  usando como premissa justamente o caráter misterioso e tom de teoria de conspiração que envolve Os Protocolos dos Sábios de Sião: um prato cheio para uma excelente trama — em que, exceto o protagonista, todos os outros personagens existiram realmente e fizeram aquilo que fizeram, e até o protagonista faz coisas que foram verdadeiramente feitas, salvo que faz muitas que provavelmente tiveram autores diferentes — que não deve nada para aqueles que gostam de histórias que envolvem complôs, espionagens e outros elementos de narrativas similares, combinando erudição, humor e reflexão.
Historicamente nada de inédito será encontrado no livro, pois, como afirma o autor de O Nome da Rosa  , “Não existe nada mais inédito do que aquilo que já foi publicado”, mas o leitor será levado a refletir como a falta de amor, respeito ao próximo e o preconceito podem levar à injustiça nas diversas áreas do relacionamento humano e até pôr em risco toda uma nação.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11713-1

Li e gostei, LITERATURA