SENHOR, TENDE PIEDADE DE NÓS, QUE SOMOS FAUSTOS.
“Cristo era um homem que sabia decifrar os códigos secretos que o Pai dele colocou nas estrelas para provocar os poetas e os astrônomos da terra”
Regina Baptista
Penso que todos somos Faustos, servindo a algum senhor em troca de algo.
Por isso a atração desse mito — mais conhecido pela obra literária Fausto, de Goethe (1749-1832) — por parte do público e de artistas de todas áreas do conhecimento, conforme registra Regina Baptista na introdução do seu livro Ato penitencial:
“O mito de Fausto tem sua propagação iniciada pelos alemães em fins do século XVI, com Faustbuch, de autor desconhecido. Depois, o mito se expande por todo o ocidente. No decorrer dos tempos, a história do homem que vende a alma ao demônio em troca de conhecimento ou outros favores, contagiou vários artistas”.
Em Ato penitencial , Fausto é um sacerdote — que teve o pai assassinado, ao tentar defendê-lo de um tiro, quando ele ainda era criança — de uma comunidade carente, que convive em duplicidade: um Fausto que foi programado para salvar a comunidade de pretensos cristãos que herdaram da História uma história de salvação das mais extasiantes de que se tem notícia. O outro Fausto é um homem cheio de vulnerabilidades, das mais pecaminosas de que se tem notícia. Ambos vivem suas virtudes e desenganos à sombra de uma razão muito lúcida. Ambos estão há muitos anos concentrados em seus pensamentos, sentimentos e ações. Ambos são iguais nisso: são profundamente vigilantes quanto ao juízo. Mas são igualmente misericordiosos com as faltas a que cada um está sujeito a cometer. Logo, o “eu” em trajes eclesiásticos e o “eu” à paisana são igualmente misericordiosos um com o outro”.
Dessa forma, posta por Regina, vejo o magistério, também, como o sacerdócio de seu Fausto: vivemos em duplicidade, tendo que conviver com a ideia de assistir almas ( alunos) — pessoas que nos buscam de uma forma ou de outra, que tumultuam nosso sossego, mas que, no entanto, são a essência da nossa vida de educador — perambularem de um lado para outro, apoiados na bengala que nós, professores, lhes oferecemos, na qualidade de ( ainda para alguns) , homens transcendentais, devido ao conhecimento que possuímos ( ou deveríamos possuir): Assistir a esse espetáculo é desesperador, pois as pessoas que nos abordam em nosso trabalho, em geral não possuem palavras para expressar o que elas sentem, cabendo a nós interpretar seus desejos e preocupações, por ser difícil delinear onde começam as nossas tarefas cotidianas e onde começa o existencialismo do outro.
Ato penitencial faz refletir sobre nossa realidade, e como Asmodeu (Demônio) nos adverte: “…seus neurônios ainda vão te matar, de tanto você pensar ! ,,,”
Regina Baptista, assim como seu Fausto criança, é uma grande contadora de sonhos ( ou pesadelos ? ), mas, por diversas vezes, parece querer nos mostrar que a vida é um jogo de dados — que não depende de Deus — diante das fatalidades da vida: “não sou poeta porque não sei ordenar meus sentimentos de forma bela e legível. Meu pensamento e meu sentimento são minhas riquezas que construí pelas minhas próprias forças; as outras riquezas, ou seja, os sonhos e pesadelos, me foram doados pela natureza”.
Enfim, da mesma forma que Fausto de Regina: “ leio tudo que se escreve hoje. Leio tanto essas coisas que não me sobra tempo para ler o que já se escreveu em outras épocas. Tudo o que já li de autores de outras épocas, outros séculos,é muito pouco comparado ao que eu deveria ler para compreender o meu tempo. Mas todo mundo que lê para chegar a algum lugar sempre acredita que ainda falta muito, muitíssimo para ler”
Ato penitencial, deve ser lido por tratar-se de uma colaboração a mais na tentativa de decifrarmos códigos secretos — colocados nas estrelas pelo Pai — e na direção de quem pretende se compreender, e compreender nosso tempo, tempos de 11 de setembro.