ARTIGO: ABORTO PSICOLÓGICO – A HISTÓRIA DE UM METALÚRGICO

 

ABORTO PSICOLÓGICO: A HISTÓRIA DE UM METALÚRGICO

“Jó soube esperar o tempo de Deus. Soube confiar, cultivando a esperança e a certeza de que Deus estava com ele”

Todos os dias eu observava o mesmo trajeto.

Antes das sete horas um homem jovem, maleta de ferramentas nas mãos, subia a ladeira apressadamente para, após as dezessete, descê-la, não tão depressa, trazendo no rosto um ar de satisfação.

Anos a fio ele, tal qual um Sísifo, cumpriu sua missão.

Certo dia, voltou com uma mordaça que impedia ver seu sorriso.

Noutro dia já não trazia a maleta de ferramentas: as mãos lhe foram amputadas.

Passada mais uma semana, apareceu usando óculos escuros: parecia um cego.

E mais uma semana parecia não ouvir direito, pois atravessava de um lado para outro da ladeira sem notar a buzina dos veículos que passavam.

Após um mês, passou a usar uma muleta, que substituía a perna amputada.

Já não era mais o mesmo homem jovem. Mais se parecia com um idoso locomovendo-se seguindo o mesmo percurso de antes.

Era como se fosse vítima de um aborto induzido em que o feto é retirado pedaço por pedaço do útero da mãe.

Aquele homem personificava um aborto psicológico, vítima do chamado gaslighting: uma forma de abuso psicológico em que informações são manipuladas até que a vítima não consiga mais acreditar na própria percepção da realidade.

Diante de tantas mudanças, resolvi conversar com ele, uma conversa íntima, e ele me contou que no seu trabalho diário, após a pandemia do Covid 19,  começaram —  em seu trabalho de chefe de seção de uma metalúrgica — por tirarem sua voz, depois suas horas de trabalho e parte do seu salário. A seguir diminuíram suas funções que foram repassadas para outros funcionários: e tudo feito de forma velada, sem aviso prévio, aos poucos, quase invisivelmente. Foi sendo mutilado e assassinado psicologicamente.

Não sei explicar, mas somente eu percebi as mudanças no homem que insistia em subir e descer a ladeira, incansavelmente.

Existem muitas formas de aborto, mas todas elas são mutilantes.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
www.tortoro.com.br
ancartor@yahoo.com

ACADEMIAS, ARL- ACADEMIA RIBEIRÃOPRETANA DE LETRAS, ARTIGOS, BIOGRAFIA