LI E GOSTEI: AS ESGANADAS

AS ESGANADAS:UMA TERRÍVEL FICÇÃO LUSO-GASTRONÔMICA

“Quando se elimina o impossível, o que resta, por mais improvável que pareça, tem de ser a verdade”

Sherlock Holmes

Ao ler as páginas da obra luso-gastronômica,  As esganadas, de Jô Soares, comendo camarão empanado, e tomando batida de maracujá nas areias da Praia Grande, desloquei-me virtualmente para Copacabana, Rio de Janeiro, 1938, tempo do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Sobre a história/ficção criada pelo autor , podemos afirmar o mesmo que Jô diz, nas páginas finais,  sobre Tobias Esteves: “Ninguém descobre se Tobias diz a verdade ou se o detetive se diverte às custas deles…”
Penso que ambas as hipóteses são verdadeiras.
As verdades de um determinado momento histórico são ditas de maneira divertida,  mas temperadas com um humor ácido.
Apesar de nascido em 49, o discurso — “arenga do ditador numa cacofonia demagógica “ — de Gegê, me soa familiar, porque sempre o ouvi na voz de meu pai, octogenário, até hoje um getulista roxo: “ …em nosso país, o trabalhador, principalmente o trabalhador rural, vive abandonado, percebendo uma remuneração inferior às suas necessidades. No momento em que se providencia para que todos os trabalhadores brasileiros tenham casa barata, isentados dos impostos de transmissão, torna-se necessário, ao mesmo tempo, que, pelo trabalho, se lhes garanta a casa, a subsistência, o vestiário, a educação dos filhos…”.
Vaguei por lugares famosos da antiga Capital Federal: confeitaria Colombo, Café Lamas, Theatro Municipal, Circuito da Gávea, o Cine Plaza. Tive a oportunidade de conviver por momentos com Filinto Müller, Chico Landi, Leônidas da Silva.
Agora qualquer jovem, bonita e gorda, me faz lembrar Cordélia, Halina Tolowski, Irmã Maria Auxiliadora, Greta, algumas das vítimas de Caronte.
Na portaria da colônia de férias onde passei o réveillon, quando o controle não reconheceu minhas digitais, pensei estar com parcial e momentânea  Síndrome de Nagali — doença do proprietário da funerária Estige, “a melhor da América do Sul”.
E ao registrar  com uma Nikon D90 as belezas do litoral, veio-me à mente a Leica 250 de Diana, repórter de O Cruzeiro.
Enfim, a trama engenhosa e os tipos criados por Jô permanecem por algum tempo em nossa mente:  “Em As esganadas, o autor do best-seller O xangô de Baker Street explora mais uma vez tema que lhe é caro: os assassinatos em série. No entanto, tal como Alfred Hitchcock, que desprezava os romances policiais cujo objetivo se resume a descobrir quem é o criminoso (o famoso “whodonit”), Jô Soares revela logo no início não somente quem é o desalmado, com sua motivação psicológica (melhor dizer psicanalítica) para matar. O delicioso núcleo narrativo está nas tentativas aparvalhadas da polícia de encontrar um criminoso que, além de muito esperto e de não despertar suspeita nenhuma, possui uma rara característica física que dificulta sobremaneira a utilização dos novos “métodos científicos” da polícia carioca.
Para investigar os crimes, o famigerado chefe de polícia Filinto Müller designa um delegado ranzinza (Mello Noronha), assessorado por um auxiliar obtuso e medroso (Inspetor Valdir Calixto), e que contará com a inestimável ajuda de um sofisticado e culto ex-inspetor, praticante da Galhofa (figura portuguesa, saída de um poema de Fernando Pessoa, Tobias Esteves) . Na perseguição ao criminoso, os três investigadores ganham a desejável companhia de uma jovem (Diana) linda, destemida, viajada e moderna, que é repórter e fotógrafa da principal revista ilustrada do país.
O leitor também pode se fartar aqui com uma outra faceta constante da obra literária de Jô Soares: a escolha de um momento do passado para cenário de sua narrativa, o que lhe permite entrar em detalhes históricos curiosos enquanto desenvolve a trama. Desta vez, voltamos ao Rio de Janeiro do Estado Novo, tendo por pano de fundo mais amplo o avanço do nazismo e as primeiras nuvens ameaçadoras que anunciam a Segunda Guerra Mundial. Entre os eventos da época que Jô resgata estão uma corrida de automóveis no Circuito da Gávea (de que participam o cineasta Manoel de Oliveira e o lendário Chico Landi) e a transmissão pelo rádio da derrota do Brasil de Leônidas da Silva para a Itália, na semifinal da Copa de 1938, na França.
Com a verve que lhe é característica, Jô consegue, neste As esganadas, realizar a façanha de narrar uma série de crimes brutais, com requintes inimagináveis de crueldade, e deixar o leitor com um sorriso satisfeito nos lábios”.
Como afirma Luis Fernando Veríssimo , “ …depois da leitura os pastéis de Santa Clara jamais significarão o mesmo”,  e nem o meu camarão empanado.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11692-1

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