DA BIBLIOTECA DO PALÁCIO DA AJUDA Á BIBLIOTECA DO REGATAS.
Quando acabo de ler um livro, a referência que deixo para outras pessoas que o lerão, segundo minha preferência, de ser ele bom ou não, são as dobras nos cantos superiores de algumas páginas e as anotações correspondentes em uma folha de papel avulsa: quanto mais dobras, melhor o livro.
De O Guardião de Livros, romance de Cristina Norton, muitas foram as dobras… e as anotações.
Que inveja fiquei de Luís Marrocos e de sua história contada, depois de duzentos anos, por uma escrava muda: um romance em estilo expressivo e inovador, assente numa pesquisa histórica séria.
Entremeados por interessantes crônicas da corte e cartas de Luís, do Rio de Janeiro do início do século XIX, aos seus familiares que ficaram em Portugal, podemos nos encantar com um escravo que se apaixona por quem não deve; uma carioca que leva um português a descobrir as delícias do sexo; um cientista judeu a quem são confiados dois livros raros naufraga nas ilhas Malvinas.
Estas são somente algumas das personagens desse romance, que narra a vida de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, um bibliotecário hipocondríaco que, em 1811, atravessa o Atlântico rumo ao Brasil acompanhado por 76 caixotes (sessenta mil livros) cujo conteúdo era verdadeiramente precioso: no seu interior seguia a Real Biblioteca do Palácio de Ajuda, inicialmente esquecida no cais de Belém quando da saída apressada da Corte portuguesa para o Brasil em 1808. A chegada ao Rio de Janeiro não foi fácil para Marrocos ao deparar com uma cidade onde nada o seduzia — nem a comida, nem os cheiros, nem o calor — e com uma corte endividada, amante de cerimônias grandiosas e grosseira nos seus costumes diários. Mas tudo mudou quando conheceu Ana de Souza Murça.
A autora descreve-nos uma vida rica em acontecimentos inesperados, onde a ironia se mistura com momentos comoventes como a história de Noémie Thierry, amante de Dom Pedro I, que mandou embalsamar o filho deles e enviou-o de Pernambuco para o Rio de Janeiro “ com a ordem de entregar a real múmia ao pai”: “O coração de D. Pedro partiu-se em mil pedaços quando abriu a caixa de madeira, porque esperava encontrar tudo, menos o corpo rígido de seu primeiro filho. Levou-o nos braços com o mesmo desvelo que teria se o bebê estivesse a dormir, levantou o alçapão da Câmara dos Pássaros e pousou-o sobre uma almofada de seda com todo o cuidado para que nunca acordasse. Mas não resistia vê-lo, e chorava-o diariamente, como se tivesse acabado de morrer”.
Quanto ao valor dado às bibliotecas, tudo continua igual, mesmo após 200 anos, como conta Jacques Arago ao seu amigo, Luís Marrocos, sobre quando esteve, pela primeira vez, na biblioteca instalada no Rio de Janeiro: “Primeiro demorou tempo a encontrar o edifício, porque nenhuma das pessoas a quem perguntava na rua sabia onde ficava. Quando finalmente chegou ao lugar, ficou espantado por estarem lá unicamente duas pessoas lendo. Quem o recebeu foi um jovem frade. Não havia ninguém competente para lhe falar sobre o conteúdo da biblioteca, que era para isso que tinha ido. Mas o frade foi prestativo e levou-o a conhecer algumas salas, dizendo honestamente que só conhecia Camões”.
Hoje, em Ribeirão Preto, com a criação do futuro parque de literatura na antiga Cianê, e a existência de quase uma centena de bibliotecas espalhadas pela cidade — sendo uma delas a do Clube de Regatas Ribeirão Preto — , Luís Marrocos teria orgulho da semente lançada no Rio, e que frutificou na nossa Capital da Cultura graças ao trabalho de Galeno Amorim, atual Presidente da Fundação Biblioteca Nacional e do Conselho do Cerlal/Unesco.