LI E GOSTEI: FRAGMENTOS DE UMA VIDA

JOANINHA: SEU NOME É FELICIDADE?

“Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos”.

Vicente de Carvalho

Fragmentos de uma vida, o mais recente livro de Carlos Roberto Ferriani, mesmo não falando somente de alegrias, mas de sofrimentos, descobertas, encontros e desencontros, recobre-se de uma aura de paz, tranquilidade, maturidade: é um diário poético, mesmo quando escrito em prosa.
Como traz na contracapa : “É uma obra que alimenta o espírito, propondo reflexões sutis a respeito de temas controversos como as relações humanas, homossexualismo, religião, poder econômico,liberdade, dentre tantos outros. Relatando fatos, às vezes corriqueiros, às vezes incomuns, um homem de alma poética, revive sua história. Fala de amor, de arte, de valores. Relembra o passado e expõe o presente, numa trama que mistura verso e prosa, sonho e realidade”.
Fragmentos cativou-me logo no primeiro capítulo, nas primeiras linhas, por levar-me à praia: “Vento suave, fresco, pouca gente, o voo das gaivotas”. Da mesma forma que Ferriani, adoro o mar, fonte que me alimenta pelo menos uma vez por ano.
Sua Júlia é alma gêmea da minha esposa Lúcia: “…leva a vida sem que nunca a sua existência seja um instrumento de problemas. Tudo se resolve bem, nunca de mal com nada. Uma mulher segura de si, decidida, linda e carinhosa”.
Da mesma forma que ele, joguei bolinha de gude, rodei pião, tomei Biotônico Fontoura e óleo de fígado de bacalhau, a Emulsão de Scott, e perdi meu Beethoven da mesma forma que Júlia perdeu Gobe, seu cão.
Num dos meus momentos de leitura, pesquei com o autor : “Quando ele ( o dourado) surge, pula e rebate na água é lindo, encantador. Principalmente, quando reluz ao sol, em cada salto ornamental que enfeita o rio e demonstra que ele vai lutar. Entregar-se, não faz parte de sua natureza. .. Talvez seja o modo dele apresentar-se ao pescador, ou parabenizar e aplaudir o truque que o prendeu, ou cumprimentar você pelo gosto da batalha que se deu. É um tipo de glória”.
No meio da leitura, fui abduzido, juntamente com o Benedito, o oftalmologista, para junto das …” imagens alucinantes das nuvens. Aquelas que só corações infantis, com esperanças e desejos de fé ardente no futuro, conseguem decifrar. Aquelas que só espíritos leves de crianças conseguem ver. E eu via muitas imagens nas nuvens, sem me esforçar. Que gostoso !”.
Na página 248, deixei a marca de uma lágrima: “Morte ( do filho de 11 anos), falta de educação com o sopro criador, dói só como dor de mãe”, e depois indignei-me com o autor ao relembrar o célebre e atualíssimo diálogo entre Colbert e Mazarino, conselheiros durante o reinado de Luís XIV, que, por incrível que possa parecer, não eram políticos brasileiros do século XXI.
E, depois de uma incômoda e curta subida pelo elevador do prédio do narrador  — “ Não conheço uma coisa tão inutilmente desagradável quanto um elevador de prédio.” —  posto-me na sacada de seu apartamento para ouvir o canário do vizinho : “ O bicho canta quando chove, talvez para irradiar o seu canto. Mais poderoso do que o trabalho das gotas que precipitam. Ou para reverenciá-las. No calor do sol, solta a sua serenata, talvez por achar que será compreendido o seu agradecimento ao astro, que apenas cumpre a sua rota, mas que transforma os dias”.
Mas, finalmente, na página 409,  o achado, a explicação ( pelo menos para mim) para a bicicleta (Joaninha)  da capa do livro, empoleirada sobre o galho seco de uma árvore — imagem que tanto incomodou minha colega de Academia, escritora Nilva Mariani, ao conhecer a obra —   quando o autor confessa: “Com tudo, motivos são muitos para se encontrar paz e felicidade, por que, então, o coração vive buscando razões para ‘bater em falha’? “
E eu respondo com os versos de Vicente de Carvalho, em seu poema, Felicidade : “Essa felicidade que supomos, / Árvore milagrosa, que sonhamos /
Toda arreada de dourados pomos, / Existe, sim : mas nós não a alcançamos /
Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos”.
Seria “Joaninha”  o nome da felicidade?
Com a palavra, meu amigo ( apesar da pouca convivência, descobri, com Fragmentos de uma vida, que temos muitas coisas em comum) e vizinho de minha Cadeira na Academia Ribeirãopretana de Letras,  Carlos Roberto Ferriani.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO70_11694-1

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