Omar embalava um sonho: ter um dia uma boa poupança, comprar uma casa própria e um bom automóvel, constituir família e conhecer o mar: Filhos não eram sua prioridade porque não se achava devidamente maduro para tê-los, e assumir tamanha responsabilidade
Por isso se preparava para os desafios da vida, lendo muito, de bulas de remédios a obras consagradas de autores nacionais e internacionais: ele era conhecido nas redondezas de sua casa como “o jovem que sempre estava lendo livros diferentes, andando pela rua”: ia de sua casa para o colégio, depois para a biblioteca municipal, e voltava para casa com mais um livro nas mãos.
Omar era estranho, quase esquisito. Cabeça de sexagenário em corpo jovem de 16 anos. Sonhava encontrar uma princesa que vivia num palácio, talvez em Passargada. Qual ocorreu com Jacó, existiu uma Lia, passageira em sua vida, mas Omar queria uma Raquel, mesmo que tivesse que esperar por muito tempo.
Devido às suas leituras, ao dormir Omar sonhava com minas de carvão do País de Gales, ao lado do Dr. Andrew Manson, idealista e sonhador como ele — personagem mencionado nas obras do médico e escritor escocês, A.J. Cronin; sonhava estar nas praias de Salvador com os Capitães da Areia de Jorge Amado ou em gélidas pairagens e estepes mencionadas por Dostoievski , Tolstoi, Gogol, Gorki. Nesses sonhos Omar convivia com Anna Karénina e os irmãos Karamazov; percorria as matas do Ceará com Iracema , de José de Alencar e conversava com personagens de Machado de Assis.
Nos fins de semana, quando não ia jogar futebol no terreno que ficava ao fundo de sua casa, ouvia, na velha vitrola, trechos de óperas com o pai: ouvia em 78 rotações, os tenores Beniamino Gigli e Enrico Caruso, ou cantava junto com o som chiado dos discos, músicas de Vicente Celestino, que ambos sabiam de cor e salteado.
Omar também gostava de frequentar o cine do bairro em que morava. Sua preferência eram filmes biográficos ou histórias reais. Mas gostou muito de assistir Ben-Hur, Os Dez Mandamentos e El Cid. Encantou-se com Sarita Montiel em La Violetera; e com Marcelino, Pablito Calvo, do filme Marcelino Pão e Vinho: Omar tinha inveja do menino que conversava com Cristo, descido da Cruz.
Tudo Omar anotava em seu inseparável diário — resumos de livros lidos, fatos marcantes mencionados por jornais, revistas e TV — inclusive ideias para criar textos, que lhe vinham à mente quando passeava sozinho pelas passarelas da pracinha do bairro., nas noites de folga da faculdade.
Omar era eloquente, gostava de falar e escrever poemas românticos, e às vezes dramáticos, que saíam de sua mente fértil. Ele se divertia criando acrósticos para algumas garotas que conhecia.
No colégio, cursando o Científico de Engenharia, era aceito pelos demais colegas, filhos de pais poderosos política e financeiramente, porque tinha a cultura adquirida nos livros e desenhava com facilidade, um dom gratuito que recebeu de Deus: era o responsável pela arte final de todos os trabalhos.
Antes de começar a trabalhar no Banco, cumpriu um ano de Tiro de Guerra, de onde saiu Cabo, e com uma medalha no peito — entregue pelo Prefeito da cidade e um General do Exército que visitou a cidade — por haver se destacado como Monitor. Eram de grande agitação política e social, pós-revolução de 64, na década de setenta.
No Banco, durante alguns meses, cumpriu a função de auxiliar de caixa: todo final de dia registrava em relatório, despesas e receitas. As contas tinham que bater porque senão, teria que ficar até mais tarde, e perderia o horário de início das aulas na faculdade, à noite: chegou a ser levado de ambulância, com cólicas renais devido a um cálculo, por não parar com suas tarefas nem para fazer suas necessidades fisiológicas. Era extremamente responsável.
Com o primeiro salário, comprou uma blusa de lã antialérgica: a que possuía, não usava porque a lã de que era feita pinicava demais. Ele então dizia aos colegas, ao ser perguntado, que não sentia frio. Com a nova aquisição, pode esquentar o frio, sentido calado por anos e anos a fio,.
Certo dia, o gerente disse que teria que dispensar alguém por problemas de contenção de despesas. Os dois contratados mais recentes eram um motoboy, casado e com dois filhos pequenos, e Omar: um deles deveria ser demitido, e seria escolhido aquele com menos tempo de admissão, o motoboy. Omar pediu ao Gerente que o demitido fosse ele, porque teria mais condição de conseguir um novo trabalho. E assim foi feito.
Em menos de uma semana, Omar foi contratado por uma empresa de venda de peças e tratores. Apesar de estar cursando a faculdade, pois sonhava ser professor de Matemática, começou seu novo trabalho separando peças velhas, retiradas dos tratores em conserto. Em pouco tempo passou a abrir Ordens de Serviço, depois foi Secretário do Gerente da oficina, e, em menos de um ano, já havia sido promovido a vendedor na seção de peças. Isso ocorreu porque Omar ocupava seu tempo vago, em cada setor que assumia, para aprender sobre os trabalhos desenvolvidos em outros setores. Demonstrava sempre um interesse em saber mais sobre tudo.
Chegou a ser convidado para ser Gerente da filial da empresa na hidrelétrica de Itaipu, no Rio Paraná, que começava a ser construída. Mas como recebia muito mais, dando aulas de Matemática Comercial e Financeira e Estatística, à noite, recusou a proposta apresentada — e, por isso, foi demitido.
Não é de se estranhar, pois era uma empresa multinacional, com Gerentes egocêntricos e autoritários, que não aceitavam um não: o Gerente Geral subia as escadas dirigindo-se à sua sala no segundo andar, passava defronte aos funcionários da seção de peças, mas somente os cumprimentava quando estava de bom humor, o que não ocorria com frequência. Quanto ao novo, e recém formado em Engenharia, Gerente da Oficina, exigia ser chamado de Doutor. Por esse motivo, Omar criou um clima de tensão, porque respondeu que, em sendo assim, queria ser chamado de Professor. Mas ali também conheceu um Gerente de verdade, um italiano, não sei se com familiares em Salerno— de onde a família de Omar havia vindo após a Primeira Guerra — muito sisudo, mas justo, com o qual trabalhou por um ano.
Enfim, todas as experiências vividas foram válidas. Omar aprendeu muita coisa sobre peças e máquinas, e aplicou esses conhecimentos adaptando-os ao trabalhar numa oficina mecânica, como comprador e vendedor de peças, na loja em anexo à oficina.
Omar continuou trabalhando muito, somente dando aulas, forma mais importante de garantir seu sustento: dava sessenta aulas por semana, manhã, tarde e noite, em três lugares diferentes.
Comprou a tão desejada casa própria, e um veiculo zero quilômetro para seu transporte. Encontrou sua Raquel e casou-se com ela. Na lua de mel conheceu, pela primeira vez, o mar, em Itanhaém.
E só então, a partir daí, soube, finalmente, quem era Omar.
E viveu feliz para sempre.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras
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