TROUXESTE A CHAVE ?
Ler Ribamar , Prêmio Jabuti 2011, romance de José Castello, — que tem como espinha a cantiga de ninar Cala a boca, que o pai de José cantava para ele, que por sua vez o avô cantava para o pai e o bisavô cantava para o avô : uma herança familiar — é um prazer e um incômodo porque, para o autor, “ a literatura é uma chave. Instrumento inútil que não corresponde a nenhuma fechadura. Uma chave que atesta o fracasso de todas as chaves”.
Enfim, não adianta dar uma resposta positiva à pergunta de Carlos Drummond de Andrade, pois que as palavras-chave são luzes ou mantos, dependendo se fizermos girá-la no sentido horário ou anti-horário, posta na fechadura.
E mais, diz o personagem José : “ jamais poderei confiar nas palavras. Já não me interesso pelo Dicionário poético de meu bisavô, Manuel Thomaz. Chave inútil, não abre porta alguma. Em vez de abrir, ela multiplica as tranca”.
Por ser “muito difícil visitar a si mesmo” , ler as 278 páginas de Ribamar é, — mesmo que o relacionamento entre o leitor e seu pai tenha sido muito bom — sempre um exercício complicado porque busca refletir sobre um relacionamento complexo: “Pensava Horácio que o homem só suporta o transitório. O definitivo o massacra. Por isso, precisa romper os vínculos com o que lhe precede e, também, com o que o espera mais à frente. Restringir-se às coisas que são”.
Segundo Lúcio Alcântara (Academia Cearense de Letras), “Claude Bernard disse que um dia o psicólogo, o poeta, e o fisiólogo falariam a mesma língua, e todos se entenderiam. A frase sugere a conexão entre a escrita e a personalidade do autor. O fruto do seu trabalho é o reflexo de sua formação (“o menino é o pai do homem”, diz Machado de Assis), inclinações, vivências, sofrimentos. E, claro, do estado mórbido do espírito. A esse estudo deu-se o nome de patografia. Vários autores investigaram essas relações na tentativa de explicar a obra a partir da doença do autor. São conhecidos, entre outros, os trabalhos de Moebius, W. Lange e Jaspers sobre Holderlin, Goethe, Van Gogh, Strindberg, Nietzsche” , permitindo ao leitor imaginar se tratar o livro de uma biografia de José Castello cujo pai se chama Ribamar.
Mas o próprio autor esclarece em uma entrevista: “ Não é a partir do nada que você escreve, você trabalha com elementos que estão à sua frente. Claro, você pode imaginar que há coisas no meu livro que são biográficas pelo fato de o protagonista se chamar José, que é meu nome, e o pai se chamar Ribamar, como o meu pai, José Ribamar, mas qualquer elemento que entre ali no livro é retrabalhado, o meu compromisso é com a invenção. Parti do Kafka e da relação dele com o pai para falar da minha relação com o meu pai”.
Vale a pena conferir o teor de um livro que o autor demorou quatro anos para escrever: “ Durante os quatro anos que eu trabalhei no livro, tudo o que me acontecia e que tinha a ver com o livro, voltava para o livro. Eu conto a história de que volta às mãos do narrador um exemplar d’A Carta ao Pai que ele havia presenteado ao seu próprio pai trinta anos antes. Essa história de fato aconteceu comigo, e quando o livro que eu dera ao meu pai voltou à minha mão, me obriguei apensar: o que faço com a história desse livro ? Só poderia ser outro livro. A volta às minhas mãos da Carta ao Pai foi o que me fez decidir a escrever o Ribamar”.
Mas traga a chave — a leitura de Carta ao Pai de Franz Kafka ou a sua própria experiência de vida — mesmo que ela não venha a servir para nada tendo em vista que Ribamar é uma coisa que nos interpreta, é um livro que insiste em nos querer ler, alterando a ordem natural das coisas, segundo Gonçalo Tavares.