ARTIGO – LI E GOSTEI – DALTON TREVISAN – QUEM TEM MEDO DE VAMPIRO?

 

DALTON TREVISAN E SEUS JOÕES E MARIAS

 

“Vampiro, sim, de almas. Espião dos corações solitários. Escorpião de bote armado, eis o contista”

 

                                                                                  Dalton Trevisan

 

Dia nove de dezembro de 2024, logo de manhã, consultando o celular durante meu trabalho no Colégio Anchieta, vi a notícia sobre a morte, aos 99 anos, do Vampiro de Curitiba, que faria 100 anos em 14 de junho de 2025: e fui picado na minha jugular pela mosca — não a azul de Machado — uma vermelha, de Dalton Trevisan, que veio a produzir em mim  uma vontade danada de ler alguma obra dele.

Fui até a biblioteca. Não encontrei a mais conhecida obra do autor, O Vampiro de Curitiba (1965), mas Mara, a bibliotecária, apresentou-me  Quem Tem Medo de Vampiro ?

Com o livro nas mãos, encontrei nos corredores, de volta à minha sala, o professor de Literatura e escritor, Alexandre Azevedo, autor de mais de cem obras — uma biblioteca ambulante — que me presenteou, em pleno corredor,  com uma aula relâmpago sobre Dalton Trevisan, ao saber da morte do autor de mais de dezenas de contos e ganhador de importantes prêmios literários.

O primeiro conto do livro Quem Tem Medo de Vampiro? pode ser interpretado como uma autocrítica de Dalton Trevisan à sua própria obra e ao universo de seus personagens. Nesse conto, o protagonista, um escritor recluso chamado Vampiro de Curitiba, parece ser um alter ego do autor. O conto reflete sobre as obsessões, angústias e a vida solitária do escritor, além de abordar a relação entre a criação literária e a realidade.

Dalton Trevisan, conhecido pelo estilo ácido e pelas histórias que retratam aspectos sombrios da vida cotidiana, utiliza o Vampiro como uma metáfora de si mesmo. O personagem pode ser visto como uma figura que se alimenta das dores, misérias e tragédias humanas para compor suas histórias. Essa figura do vampiro-escritor poderia ser uma crítica ao próprio processo criativo do autor, que expõe as mazelas humanas de forma quase voyeurística.

Portanto, o conto não apenas estabelece o tom do livro, mas também sugere uma reflexão sobre o papel do autor como observador e narrador das experiências humanas, questionando os limites éticos e pessoais desse processo. É uma abertura que dialoga com os outros contos do livro, ao mesmo tempo que os desconstrói.

Outro detalhe interessante que notei após ler as 101 páginas, e 23 contos, foi o fato de Dalton Trevisan, usar repetidamente os nomes João e Maria em diferentes contos de Quem Tem Medo de Vampiros?, — o próprio autor em seu primeiro conto diz: “ Há que de anos escreve ele mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João e sua bendita Maria” — o que me parece é que ele recorre a esses nomes com múltiplas intenções simbólicas e literárias, a saber: universalização dos personagens: João e Maria que são nomes comuns e remetem a figuras genéricas, quase arquétipos, permitindo que o leitor projete qualquer pessoa ou situação sobre eles. Isso os transforma em representações universais do ser humano, com suas dores, fraquezas e contradições; resgate simbólico do conto de fadas: os nomes evocam a história clássica de João e Maria, que lida com abandono, fome e sobrevivência: em Trevisan, esses temas aparecem sob novas formas, como a violência urbana, a miséria e os dilemas morais; transportando os arquétipos do conto infantil para a realidade sombria de sua Curitiba ficcional; fragmentação e continuidade: A repetição dos nomes sugere que os personagens podem ser tanto os mesmos quanto diferentes em cada conto, criando uma conexão entre as histórias e enfatizando a circularidade das experiências humanas, como se fossem variações de um mesmo tema; exploração da banalidade e da tragédia: João e Maria simbolizam o cotidiano comum, mas em Trevisan, suas vidas são marcadas pela brutalidade e pelas nuances psicológicas. Ele demonstra como as tragédias individuais, mesmo que anônimas e banais, carregam profundidade e complexidade. Assim, Dalton Trevisan utiliza esses nomes com um propósito que transcende a individualidade, explorando temas universais em um cenário específico, ao mesmo tempo em que reforça a dimensão simbólica e literária dos seus textos.

Finalmente é importante destacar que, em Quem Tem Medo de Vampiro? o nonsense aparece como uma ferramenta para destacar o grotesco e o absurdo das relações humanas, especialmente no cenário urbano. O livro, composto por contos curtos, aborda situações cotidianas, mas as distorce de maneira que elas se tornam estranhas, desconfortáveis ou, por vezes, cômicas de maneira amarga. O nonsense também  manifesta-se nos diálogos truncados, nas atitudes desproporcionais dos personagens e nas situações aparentemente triviais que descambam para o surreal ou grotesco. Trevisan frequentemente coloca os personagens em cenários em que suas emoções e reações parecem absurdamente deslocadas, evidenciando o vazio ou o desespero da existência.

Por exemplo, o nonsense surge em descrições exageradas ou em contrastes entre o que os personagens dizem e fazem. Isso cria um efeito de estranhamento, onde o leitor é levado a questionar a normalidade do comportamento humano em um contexto que, embora pareça cotidiano, está carregado de uma lógica interna peculiar, quase absurda.

O tom irônico e o humor ácido de Trevisan também contribuem para essa atmosfera de nonsense, pois tornam a leitura desconcertante, ao mesmo tempo em que fazem o leitor rir de situações perturbadoras. Esse é um dos traços marcantes de sua obra: um nonsense que não é apenas para entretenimento, mas para revelar verdades sombrias sobre a natureza humana.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras
www.tortoro.com.br
ancartor@yahoo.com

 

COMENTÁRIO(S) SOBRE O ARTIGO ACIMA.

 

Tórtoro, seu texto é de uma felicidade ímpar, inclusive original na abordagem. Pois você destaca a humor de Trevisan e este é um lado que a crítica raramente aborda, quando aborda, por ser o humor uma das últimas coisas que se poderia superficial e mineiramente atribuir a um escritor tão sombrio. Mas você fala de um humor não no sentido tradicional, mas do humor-ironia denso e agudo, revelador do lado sombrio, sim, sombrio, de suas personagens que somos todos nós, o nosso lado sombra quase apagando o nosso lado luz. Seu artigo faz Jung revirar na cova. Um belo artigo, digno de circular nos melhores jornais do país pela profundidade e originalidade da abordagem. Se me autorizar, ponho no Jornal da ARL, que estou finalizando ainda esta semana. Obrigado, amigo, pela leitura de seu texto.

 

WALDOMIRO PEIXOTO – Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras

 

 

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