O ACUMULADOR DE LIVROS
(Miniconto)
“O Senhor é meu Pastor, nada me faltará”
Salmo 23.
Durante setenta e cinco anos, o professor Fibonaci acumulou livros.
Leu todos. Não emprestava. Acumulava.
A casa, com sete cômodos, se transformara em um labirinto de lombadas e espirais de mofo.
Havia livros nas prateleiras, sobre as mesas, sobre as camas.
No banheiro, o vaso sanitário servia de apoio para uma edição ilustrada de “Dom Quixote”; na cozinha, um livro de receitas repousava sobre um micro-ondas que ninguém mais sabia se funcionava. Os corredores eram trincheiras de papel. Respirava-se pó e poesia.
Coleções raras de autores nacionais e internacionais, enciclopédias herdadas, brochuras de banca, fascículos nunca completos.
Era impossível andar sem tropeçar na sabedoria.
Um dia, no entanto, Fibonaci percebeu uma janela nova na sala de leitura (ou talvez ela sempre estivesse ali, escondida atrás de Borges, Balzac, Machado de Assis e volumes da Barsa).
Não era exatamente uma janela — era mais um buraco negro emoldurado em madeira. Um vazio que sugava até o olhar perdido do acumulador.
Sem motivo aparente, ele começou a jogar os livros para fora da sala. Um a um. O som do papel sendo tragado era seco, como aplausos em um teatro vazio. E assim passou dias. Livros sobre política, romances russos, quadrinhos dos anos 60, dicionários em latim, tudo voando rumo ao nada.
Ao final, restava apenas um exemplar de Caminho Suave, a cartilha com que aprendera a ler. Ele passou a desfolhar página por página. A da abelha, B de barriga, C do cachorro. Leu em voz alta cada sílaba como quem acende velas num funeral. Jogou as páginas pela janela, uma por uma, até a do Z de zabumba.
A casa ficou vazia, muda.
Fibonaci, agora só, olhou o buraco negro pela última vez. Enfiou nele a cabeça, depois os ombros. Atirou-se, sem medo, no espaço infinito. Desapareceu.
Na manhã seguinte, o buraco cuspiu de volta apenas um livro: a edição completa e inédita da Bíblia Sagrada, escrita em tinta invisível e encadernada com pele de pêssego.
O livro caiu no centro da sala vazia. A casa suspirou.
E o Livro passou a declamar o Salmo 23.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL- Academia Ribeirãopretana de Letras
www.tortoro.com.;br
[email protected]