ARTIGO: REFLEXOS COMBATENDO A SOLIDÃO DA ÚLTIMA CALOPSITA

 

REFLEXOS COMBATENDO A SOLIDÃO DA ÚLTIMA CALOPSITA

“Se eu o colocasse diante de um espelho, as palavras voltariam ao normal.”.

Do livro “Através do espelho” – Lewis Carroll

 

Durante anos, meu falecido filho Rodrigo, minha esposa e eu, convivemos com quatro calopsitas. Elas sempre foram mais do que aves de estimação — foram companheiras, parte da rotina, pequenas vidas que preenchiam a casa com sons, movimentos e uma ternura difícil de descrever. Com o tempo, no ritmo inevitável da natureza, três delas partiram, todas por velhice. Hoje, resta apenas uma.

Desde que as outras se foram, notei uma mudança em seu comportamento. A última calopsita parecia mais quieta, menos animada. Como nós, seres humanos, ela também sentiu a perda. Os pássaros, embora muitas vezes subestimados em sua capacidade emocional, percebem a ausência. Eles criam vínculos, se habituam à companhia, à presença constante do outro.

Foi pensando em sua solidão que resolvi colocar um espelho em sua gaiola. Uma ideia simples, quase instintiva: será que o reflexo poderia lhe trazer algum conforto? Quase de imediato, ela passou a interagir com a imagem no espelho. “Conversava” com ela, cantava, se aproximava com curiosidade, como se reencontrasse ali uma presença familiar, uma companhia possível.

A cena me comoveu — e me fez lembrar de como os espelhos têm desempenhado, ao longo da história, papéis profundos na vida das pessoas. Não apenas como objetos de vaidade ou autoconhecimento, mas como pontos de contato com o outro, com o que perdemos ou desejamos reencontrar.

Na literatura, o espelho já foi metáfora de fuga, de reflexão íntima, de viagem interior. Lewis Carroll, em Através do Espelho, cria um universo onde o reflexo é passagem para outra realidade. Virginia Woolf, com sua escrita introspectiva, também revela como o espelho pode ser presença em tempos de ausência. Em momentos de solidão, ele se transforma em algo mais que um objeto: vira companhia, testemunha silenciosa daquilo que somos ou do que queremos ser.

Minha calopsita não sabe que aquele reflexo é dela mesma. Talvez nem importe. O que importa é que ela parece feliz de novo. Em sua interação com o espelho, reencontrou um ritmo, um diálogo, uma resposta.

E assim, aprendi mais uma vez que os afetos não têm formas rígidas. Podem habitar até mesmo um reflexo. A última calopsita não está sozinha — há ali, diante dela, um fragmento de si mesma que a ajuda a seguir em frente.

E isso, às vezes, é tudo o que precisamos: um reflexo que nos devolva um pouco de companhia para que tudo pareça estar voltando ao normal.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras
www.tortoro.com.br
[email protected]

 

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