DE SIENA PARA FIESTA

Meu Siena 2005, modelo 2006, 1.0, durante quase sete anos foi meu uniforme, a vestimenta que usei todos os dias, seja para trabalhar ou para lazer.
Pegar a chave e ligar o seu motor foi praticamente o primeiro ato de cada um dos mais recentes milhares de dias de minha vida: um ritual.
Nascido Fiat/siena fire flex, o verde emerald de sua certidão de nascimento ficava negro ao cair da noite, mas continuava o mesmo amigo servil, esperando na garagem, durante a semana,  até as primeiras horas da manhã por qualquer necessidade ou emergência que dependesse de seus préstimos, quando então tomava um tom verde musgo sob a luz do sol: ele parecia, como eu, gostar do dia.
Cada um dos seus arranhões e manchas na pintura, tinha uma história, assim como as minhas rugas de sexagenário: riscados de  pontas de galhos mais salientes de uma árvore, as fezes de pássaros, o esbarrão da bicicleta ou da moto que passaram em alta velocidade, muito próximas,  e deixaram suas rubricas, o amassado de uma encostada da escada do pedreiro durante a reforma da casa, o picotado da pedra espirrada das rodas do caminhão que ultrapassei durante uma viagem, os riscos das garras do cão do vizinho que um dia resolveu fazer uma festa na minha chegada, a escrita da ponta do compasso do aluno que desforrou na lataria a indignação diante de uma advertência, sem contar os pneus novos, trocados depois de uma tentativa de “assassinato”,  furados com um canivete.
Nos bancos, imperceptíveis para quem não conviveu com meu Siena, as marcas das lembranças: a primeira voltinha pelo bairro sentindo o cheiro inconfundível de carro novo, os pelos do meu falecido cão Beethoven, o perfume da minha esposa, as fotos a serem colocadas ou retiradas de  exposições, o guarda-chuva sempre no mesmo lugar do banco traseiro.
No porta malas a imaginação continua aconchegando a bagagem a ser levada nas  viagens de férias, as despesas feitas nos supermercados, os apetrechos de pesca.
A reposição da água de arrefecimento do motor, a limpeza dos polos da bateria, a água do lavador do pára-brisa, a gasolina do reservatório para partida a frio, a verificação do funcionamento de faróis e lanternas, a  calibragem semanal dos pneus, ou a ida semestral ao mecânico de confiança, foram sempre  momentos  em que eu descobria novos detalhes do meu 70_11700-1Siena, aumentando nossa íntima relação.
Com ele recebi minha primeira ( e espero que seja a única) multa de trânsito depois de  quase quarenta anos com carta de habilitação.
Na despedida, que durou  mais de cinquenta dias — enquanto esperava pelo Fiesta da Ford — e terminou na loja onde o deixei, não tive coragem de olhar nos seus olhos tristes de faróis abandonados, depois de  tantos anos de troca de olhares a cada vez que eu o deixava em estacionamentos e nas ruas, após acionar os alarmes para sua proteção: era um amor à primeira vista que terminava, findos tantos anos de lua de mel.
Quase que relutante, recebi das mãos do vendedor as novas chaves do Fiesta Sedan Prata,  Rocam, 1.0, que me acompanhará, espero, por mais alguns anos, e parti, sentindo-me infiel, com meu novo amor de quatro rodas.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

 

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