Enquanto eu lia a crônica Não aconselho envelhecer, de Rachel de Queiroz, publicada no seu livro Falso mar, falso mundo, sob um sol de verão beirando os quarenta graus, na Praia Grande, litoral sul do Estado de São Paulo, vi passar por mim uma idosa mais do que octogenária, carregando nas costas um saco preto de plástico, em geral utilizado para depósito de lixo, mas que naquele momento pareceu-me cruz que servia para carregar latinhas vazias de refrigerantes e cervejas.
Emitindo um som esganiçado, entre pedido de socorro e súplica, ela contornava os conjuntos de banhistas que se aglomeravam embaixo de guarda-sóis multicoloridos, implorando: latinhas, latinhas, latinhas…
E o saco plástico acolhia latinhas vazias aqui e acolá, num ritual repetitivo e quase automático.
Observando mais de perto, notei que seu chapéu de praia, de um roxo imundo, deixava escapar pela aba algo parecido com espinhos.
Os pés há muito sem um banho, deixavam-se cobrir de varizes e por uma camada pegajosa de areia e suor, parcialmente protegidos pelo que parecia ser uma sandália de pescador.
O vestido de um azul estampado com flores, chegava aos joelhos, parecendo mais uma túnica sobre uma camiseta de um branco encardido.
A pele visível no rosto, braços, mãos e pernas, eram tremendamente flagelados pelo tempo e pelo sofrimento, com a aparência de lepra.
Não consegui olhar em seus olhos e, por três vezes, neguei sua presença, fiz que nada via quando, a alguns metros de distância de mim, ela bateu a cabeça contra a madeira de sustentação de um guarda-sol, ao tropeçar numa esteira estendida no chão e, finalmente, quando se abaixava com esforço supremo para apanhar uma latinha de cerveja. Tudo aconteceu antes que, pela terceira vez, apitasse o salva vidas de plantão, avisando os incautos banhistas sobre os perigos do mar.
Enquanto isso, ela se perdia na multidão, e eu voltava ao texto de Rachel : “Entre os processo cruéis da natureza, é a velhice o mais cruel. Implacável, insidiosa, ataca por todos os lados, abre a porta a todas as moléstias mortais. Pensando bem, é uma espécie de HIV a longo prazo. Te ataca o coração, o pulmão, todas as demais vísceras — a tripa, o fígado, o que nos abatedouros se chama o arrasto. E mais a fiação arterial e venosa; e a coluna ! E não falei na atividade cerebral. E também esqueci os ossos, a infame osteoporose, que te rói os ossos pelo tutano, deixando-os como frágeis cascas de ovos. E então basta um pequeno escorregão na banheira para deixar um fêmur fraturado”.
No momento em que digito essa crônica, já em Ribeirão Preto, não tenho como mostrar minha solidariedade àquela senhora, sentindo-me um misto de Pedro e Pilatos.
Mas será era o momento, e nada fiz ?
Poderia ?
Enquanto isso, 127 pessoas, sem qualquer tipo de culpa ou constrangimento, tiram dos bolsos do povo, em forma de aposentadorias e pensão para ex-governadores e suas viúvas, quase trinta milhões de reais por ano, o que daria para construir 800 casa populares, cabendo, talvez, uma delas, à senhora das latinhas que encontrei na praia.
A OAB nacional diz que irá questionar a constitucionalidade do benefício no STF.
Ainda resta uma esperança para os portadores desse tipo de HIV: a velhice, principalmente a desprotegida pelo governo.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO