LEI MARIA “LEILA” DA PENHA ?

“Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos   e a carne de minha carne”

 

Gênesis, II, v. 23

 

São muitas as críticas à Lei de número 11.340, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente Lula em sete de agosto de 2006, denominada popularmente, Lei Maria da Penha.
A Lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, e, no dia seguinte, o primeiro agressor foi preso, no Rio de Janeiro, após tentar estrangular a ex-esposa. Mas muitas mulheres já morreram por, justamente, terem denunciado seus parceiros e não terem sido devidamente protegidas pela lei.
Mas poderia ter sido pior.
Lendo O Livreiro de Cabul, campeão nas listas de mais vendidos do New York Times, e conhecendo a vida de três das personagens do livro — Sharifa, a esposa mais velha de Sultan Khan, preterida e exilada no Paquistão; a mais nova, Sonya, obrigada a se casar aos 16 anos; e Leila, uma das irmãs de Sultan, tratada com desprezo como se fosse uma escrava  — podemos perceber como a mulher ainda é incrivelmente discriminada em grande parte do mundo.
Por ter vivido três meses com uma família afegã, na primavera de 2002, logo após a queda do regime talibã, a jornalista norueguesa Asne Seierstad produziu uma narrativa ímpar que mostra aspectos do país os quais  poucos estrangeiros testemunhariam.
Ocidental, mulher e hóspede de Sultan Khan, um livreiro de Cabul, a autora obteve o privilégio de transitar entre o universo feminino e masculino de uma sociedade islâmica fundamentalista. Preso e torturado durante o regime comunista, dos mujahedin e dos talibãs, Sultan Khan teve sua livraria invadida e parte dos livros queimada, mas alimentava o sonho de ver seu acervo de 10 mil volumes sobre História e literatura afegã transformar-se no núcleo de uma nova Biblioteca Nacional.
Apesar da situação estável, a família do livreiro, duas mulheres, cinco filhos e parentes, dividia uma casa de quatro cômodos em uma cidade que se recuperava da guerra e de trágicos refluxos políticos. Os integrantes da família acostumaram-se à presença da autora sob uma burca. Assim, ela pôde observar relatos das rixas do clã; da exploração sexual das jovens viúvas que esperavam doações de alimentos das organizações de ajuda internacional; da adúltera sufocada com um travesseiro pelos três irmãos sob as ordens da mãe; do exílio no Paquistão da primeira esposa de Sultan Khan, após um segundo casamento com uma jovem de 16 anos; do filho adolescente do livreiro obrigado a trabalhar 12 horas por dia, sem chance de estudar.
Segue um momento que resume o sofrimento da maioria das  mulheres afegãs: “Leila está fazendo comida à luz de vela. Sultan quer comida feita em casa para levar para o trabalho. Ela frita frango, faz arroz e molho de legumes. Ao mesmo tempo, lava a louça. A luz da vela ilumina seu rosto. Ela tem grandes olheiras escuras. Quando a comida está pronta,ela retira as panelas do fogão, envolve-as em panos e dá um nó forte para segurar as tampas, para Sultan e os filhos as levarem na manhã seguinte. Então limpas as mãos gordurosas e vai se deitar com as mesmas roupas  que usou o dia todo. Ela estende seu tapete, cobre-se com um manto e dorme, até ser acordada pelo mulá poucas horas mais tarde, e começa outro dia acompanhada de “Allahu akhbar” —  “Deus é grande “. Um novo dia com o mesmo cheiro e gosto de todos os outros dias: de poeira”.Infelizmente ainda está longe o tempo, principalmente no Afeganistão de Leila,  em que uma lei Maria “Leila” da Penha poderá fazer da mulher o próprio antônimo do que seja sofrimento, ausência de beleza, remendo, coisa mal feita, asperezas, passando a ser o  seu reino o belo, o doce, o liso, o perfeito, o macio, como o desejado por minha amiga Ely Vieitez Lisboa em seu artigo  Carta aberta aos homens , no livro Tempo de Colher.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

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