COITO LITERÁRIO INTERROMPIDO

“A leitura é a viagem de quem não pode pegar um trem.”

Francis de Croisset

Um telefonema que interrompe o almoço ou jantar.
Numa apresentação teatral, a cortina que cai antes do final do ato.
No cinema, quando no meio do filme acaba a energia elétrica.
A queda de uma mosca no último copo de cerveja geladinha.
O furo no pneu do carro em plena viagem de férias.
A chuva de verão durante aquele piquenique especial com a namorada.
A tinta da caneta esferográfica que acaba enquanto se anota um número de telefone.
A carga da bateria do celular que não resiste até o fechamento de um negócio importante.
O criança que chora de madrugada, no momento em que os sonhos se apresentam paradisíacos.
A linha de pesca que se rompe quando o pescado já está nas margens do rio.
A fome descobrindo o fio de cabelo flutuando no prato de sopa.
O momento da “cola”  sendo flagrado pelo professor.
A hora em que a esposa surpreende o marido com a amante no motel.
A falta da folha de cheque, e/ou esquecimento do cartão na hora do pagamento das compras.
A vontade de ir ao banheiro no melhor momento da novela ou do jogo de futebol.
O furo no saco de açúcar na saída do mercadão.
Os óculos que embaçam no meio do trânsito caótico.
O celular que toca nas horas mais impróprias.
Mas pior incômodo, dentre todos, é quando alguém interrompe a leitura de um livro.
A sensação é a mesma que sente um místico em êxtase, ao ser tirado do transe pelo rufar de mil tambores: a alma, sacada de sua viagem a lugares fantásticos, volta ao invólucro carnal com a  delicadeza de pisadas de rinocerontes.
No meu caso, perco o chão, e toma conta de mim um misto de indignação e raiva.
Mas , em segundos, volto ao normal e retribuo a “agressão”, como determinam as regras sociais, com  um sorriso e uma resposta amável.
Perdido o  tesão, e mantido um rápido diálogo,a volta ao texto, aos locais antes visitados, e às imagens mentais que alegravam e enriqueciam minha mente, é retomada imediatamente, desde que meu interlocutor não seja do tipo que acha que ler é a mesma coisa que assistir a novelas — pode-se perder capítulos de uma semana inteira sem que se perca a o fio da meada —  e insiste em alongar o assunto.
Mais popularmente, posso dizer que o atrapalhar de uma leitura equivale a um coito interrompido: nada mais frustrante, nada mais desestabilizador, nada mais característico dos “malas”, dos chatos, dos inconvenientes e daqueles que nunca souberam o prazer que pode proporcionar uma boa leitura.
Por ser o momento da leitura muito mais que uma simples relação dos olhos com os livros — como escreveu Luis Garcia Montero — a leitura é um espaço, um lugar predileto, uma luz escolhida, um ritual em que importa até a época do ano : é um momento íntimo ( qualquer que seja o local, público ou privado,  em que estiver o leitor)  a ser respeitado.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

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