“O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem.
Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”
Fernando Pessoa
Ninguém sabe ao certo quantas pessoas vivem nas ruas. Tudo isso porque não existe uma estatística oficial sobre o assunto. O certo mesmo é que são muitas. Estão pelas calçadas do centro e da periferia da cidade, debaixo de viadutos, mendigando e dormindo em praças, evidenciando a gravidade do problema.
Sendo assim, é sabido de todos a importância de um teto para a dignidade de qualquer ser humano: mas nunca imaginei como é terrível ficar sem ele, mesmo que parcialmente e por pouco tempo.
Tecto ou teto, do latim tectu , segundo a Wikipédia- A enciclopédia livre, é a superfície interior da cobertura de uma estrutura arquitetônica, ou seja, a face superior (horizontal ou angular) de um determinado espaço que faz a ligação com o pavimento por meio das paredes.
No Houaiss temos: cobertura, parte superior interna de um recinto (aposento, casa, edifício etc), a qual assenta sobre as paredes e, por vezes, também sobre colunas; cobertura de uma construção; telhado; casa, habitação; abrigo aquilo que ampara, agasalho, lar.
Mas teto é muito, muito mais.
“ Mas, um dia, “nóis” nem pode se “alembrá” / Veio os “home” co’as ferramenta” / O dono “mandô derrubá” / “Peguemo” todas nossas coisa’ /
E “fomo” pro meio da rua / “Apreciá” a demolição / Que tristeza que “nóis sentia” / Cada “táuba” que caía / Doía no coração “.
Quando Ernesto, o pedreiro mais perfeccionista que já conheci, e que sempre me acode para pequenas reformas, começou o trabalho de demolição do meu antigo teto, cada telha que caía , mesmo negra e envelhecida, doía no coração: não sei por que me vieram à mente Adoniran Barbosa e os versos de sua Saudosa Maloca.
Existe também uma música do Vinny, Mané sem teto , em que a letra diz: Nós, / Somos sem teto / Somos sem cama / Somos sem terra / Somos sem nada / Somos sem trampo / Somos sem grana…
Foi assim que me senti — apesar de ter uma família, um emprego, uma profissão, saúde, um salário fixo, uma residência — durante uma noite em que, para reformar o telhado de minha casa, tive que dormir sem meu teto: eu tinha uma laje, mas não tinha um telhado, um teto.
Só então senti a enorme diferença que faz ter ou não um teto, ou o quanto é importante ter ou não um teto com telhas novas e todas nos devidos lugares, um teto bem construído, sem remendos, sem afundamentos, sem madeiramento escurecido e apodrecido pela ação do tempo.
Um teto assim, de verdade, dá poder, dá segurança, dá esperança, expulsa o medo que acompanha as chuvas de verão, as ventanias do outono, e a insegurança passa longe, passa a ser quase uma desconhecida.
Enfim , a reforma do meu teto, foi um momento inesquecível, palco de sensações inexplicáveis, e, apesar de todas as dificuldades inerentes a uma reforma, tudo acabou bem por eu poder contar com profissionais incomparáveis.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO
COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA:
ACT,
O bom de seus textos é que eles sempre veem abaixo da superfície. É interessante notar como é tão diversa a sensibilidade humana. Com você, especialmente, cada fato, cada cadinho de nada, se transforma em um símbolo. Não um símbolo fortuito, casual. Mas um símbolo sempre revestido de alta dose de humanismo, pretexto para sempre fazer uma leitura diferente do mundo.
No caso presente, qualquer um de nós veria, na derrubada do teto, a oportunidade de ter um teto novo, um teto que talvez significasse mais conforto, renovação, melhoria de seu espaço habitado/ável, ou algo similar. Você, não! Você viu a história de seu teto, viu a revelação de seu (sua família) tempo sob as telhas musguentas e já possivelmente carcomidas, viu o quanto de vida havia por trás de cada caco que, não por acaso, “doía no coração” quando esboroava-se no chão onde tantas e em tão diversas circunstâncias você e família pisaram, sujaram. limparam, riram e choraram.
Em um jogo dialético, acaba por nos fazer pensar na importância de um teto para quem o tem, para quem não o tem, para quem nunca teve. Instiga-nos e à nossa sensibilidade a remoer, como pedra dentro do sapato apertado, como o cravo que fura a sola e miudamente come a pele de nosso calcanhar, que há tetos e tetos.
O seu teto me faz lembrar o tênis surrado, carcomido, furado no dedão, calcanhar descolado, mas que não temos coragem de jogar fora, porque ele conta metonimicamente a história do filho que se foi. A visão religiosa do mundo – falo da religião ontológica não sectarista – há de ter sacramentos para ser completa e unir o homem a Deus. O tênis é um sacramento, porque passa a ser o filho e, por tanto, deve ocupar o lugar mais nobre da estante, ao lado dos desenhos dele quando ainda descobria o mundo no Jardim da Infância. Para onde o filho se foi?! Ora, isso deixa que cada um use da própria sensibilidade para imaginar onde ele estaria agora. Assim feito você que deve ter colocado um pedaço da telha no melhor cantinho de seu quintal.
Um abraço imenso e obrigado por colocar poesia em tudo e, como um Midas, transformar o prosaico em ouro.
Waldomiro Peixoto
Escritor
Membro da Academia Ribeirãopretana de Letras
Tórtoro:
O poeta se revela até mesmo num assunto banal… banal para quem não é emotivo.
Abraços
Nilva Mariani
Escritora
Membro da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras