SONHEI UM PESADELO

“Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, pois cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada um que passa em nossa vida, passa sozinho, mas quando parte, nunca vai só nem nos deixa a sós. Leva um pouco de nós, deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, mas há os que não levam nada”.

Kalil Gibram
Na novela Viver a Vida, da rede Globo, a secretária de Marcos (José Mayer) , Caru (Ana Carolina Dias) , ao ser perguntada  por Dora (Giovanna Antonelli) , porque tratava seu chefe de doutor,  ela  responde que não sabia a formação universitária dele,  mas era doutor porque era o dono, um  empresário bem sucedido.
Cobrindo fotograficamente o Carnaval 2010 de Ribeirão Preto, tirei muitas fotos do circo montado na avenida pelos Bambas, campeões do Carnaval: uma homenagem ao palhaço de verdade, Piolim.
Também tomei conhecimento de alguns falecimentos no mundo das letras ribeirãopretanas, dentre eles,  de um grande e respeitável homem e amigo, Dr Alfredo Palermo, da Franca do Imperador: infelizmente não são somente os crápulas que morrem.
Depois de uma caprichada  feijoada, acompanhada de uma deliciosa caipirosca, encostei-me um pouco para descansar, e dormi, numa terça-feira de Carnaval.
Dormi e sonhei um pesadelo: eu trabalhava numa filial multinacional de peças e tratores.
O gerente geral, todas as manhãs, depois das dez, chegava apressado, subia até o meio da escadaria que levava à sua sala e ao escritório, olhava para nós, reles funcionários da seção de peças aos seus pés, e, quando estava de bom humor, um humor que me parecia sempre sarcástico, contava, em voz alta, como exigia a  teatral situação,  uma piadinha, olhando para o chefe da seção, e esperava pelo riso de aprovação de toda a plateia.  Mas quando ele estava de mau humor, passava reto, não dirigia a palavra a ninguém, e seu bigodinho à Hitler só deixava escapar  gargalhadas ao ser rodeado — na sala/aquário particular de paredes de vidro — pelos vendedores de máquinas e peças: elite do pedaço, com polpudos salários e comissões,  e com motivos de sobra para piadas e chacotas sutis, logo de manhã,  endereçadas ao  contador e  chefes de seção — uns poucos que contavam com a benesse de poderem trocar palavras com o supremo patrão. Amavam todos eles, de forma intensa, diziam as más línguas, a telefonista e a secretária.
Todos ali faziam parte de uma  ópera bufa, cujo palco se estendia à minha frente, e que, vez ou outra, era invadido por  um chefe de oficina parecido com Dom Quixote, alto, magro e com espesso bigodão, sempre seguido por seu mecânico de bolso, que poderíamos chamar de Sancho, um quase anão gordinho e atarracado.
Gerenciava a oficina um recém formado engenheiro que queria porque queria, ser chamado de doutor, sem nunca haver defendido tese: e essa sua mania de grandeza recebia todo o apoio do fürer tupiniquim.
Cena rápida , fui chamado para uma reunião na sala do supremo e instigado a chamar o engenheiro de doutor —  quem quer impor seu título de doutor, com certeza não o merece, mesmo que seja durante um pesadelo.
Respondi que, então, eu  também queria ser chamado de professor: olho por olho, título por título.
Perdi o emprego, e, furioso,  acordei do pesadelo vivido numa empresa que hoje não mais existe, e talvez nunca tenha realmente existido.
Voltei a me lembrar de Palermo, Dr Palermo, esse, sim, merecidamente Doutor: calmo, tranquilo, inteligente, culto, ponderado, amigo, água límpida e cristalina num mar, quase sempre de lama, em que vivem imersos os meios ditos culturais.
E senti uma dor imensa, fruto da saudade de um conselheiro experiente e fraterno que, com seu desaparecimento, levou pouco de mim, mas  deixou-me muito de si mesmo.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

Na foto , Dr Alfredo Palermo com  Tórtoro,  num almoço da ARL- Academia Ribeirãopretana de Letras.

 

 

COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA:

 

O Dr. Alfredo Palermo foi meu professor de Direito Civil na Faculdade de Direito  “Laudo de Camargo”.
Que linda e merecida homenagem esta, meu caro amigo.
Ele foi, realmente, tudo o que você adjetivou.
Um ser humano inigualável e inesquecível.
O resto?
Bem, o resto foi um pesadelo.
Ainda bem.
Corauci Sobrinho  – Secretário da Culrura de Ribeirão Preto 2008

 

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