UM ABISMO QUE NÃO É DE AMOR

Nasci quase um ano antes da TV Tupi de São Paulo, PRF-3 TV, canal 3, que foi inaugurada em 18 de setembro de 1950.  Era a concretização do sonho de um pioneiro da comunicação no Brasil: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, que já controlava uma cadeia de jornais e emissoras de rádio chamada Diários Associados.
Logo, faltam alguns dias para eu me tornar mais um sexagenário.
E já começo a revirar baús, tanto os da memória quanto os físicos: gavetas, pastas, embrulhos, envelopes.
E, numa dessas buscas, encontrei um caderno brochura, produzido em   1947, com letras de músicas de Vicente Celestino, manuscritas por meu pai, fã ardoroso d’ A Voz Orgulho do Brasil.
Aprendi  a amar  poesia ouvindo nos 78 RPMs  as composições  de Catulo da Paixão Cearense (Ontem ao Luar) , Ari Barrosos ( Malandragem) , Domingos Correa e Santos Coelho ( Flor do Mal) , Cândido das Neves, o  Índio  ( Noite Cheia de Estrelas, Rasguei o seu Retrato, Castelo de Areia, Abismo de Amor ) , Gastão Barroso e Marcelo Tupinambá ( O Cigano) , Raul Silva (Lágrimas de Amor ) e do próprio Celestino ( Porta Aberta , Patativa, Ouvindo-te, O Ébrio, Coração Materno).
O voz metálica e ao mesmo tempo suave — do descendente de calabreses e admirador de Caruso — nas manhãs de domingo, invadia os poucos cômodos da nossa singela morada, na rua Olavo Bilac, e vazava vizinhança afora, saída de um móvel enorme que acolhia o rádio vitrola Crosley, com enormes válvulas, prato giratório e braço manual com agulha e tudo o mais.
Enquanto um dos enormes discos negros de vinil rodava ondeante, misturando música e chiado característico, eu manuseava, com todo o cuidado, os demais, encantado com as multicoloridas etiquetas da Odeon,  e com o cãozinho que parecia estar ouvindo a mesma melodia que eu, diante do gramofone da RCA Vitor: “His master’s voice” .
“Ó lua, o argênteo véu se espalma / por sobre a noite eterna / que eu tenho dentro d’alma /  Ao teu luar de prata /  um beijo originou /  o amor que aquela ingrata /  em cinzas transformou” .
Corria a década de cinquenta e, com ela, a minha infância.
“Noite alta, céu risonho / A quietude é quase um sonho / O luar cai sobre a mata  / Qual uma chuva de prata / De raríssimo esplendor / Só tu dormes, não escutas / O teu cantor / Revelando à lua airosa / A história dolorosa desse amor” .
Eu nem imaginava que algumas décadas depois eu estaria escrevendo meus próprios versos, publicando livros, dando, assim, uma mínima contribuição para a tão rica e fervilhante vida literária  da minha Ribeirão Preto.
Mas também nunca imaginei que leria numa Folha de São Paulo, em artigo de página inteira —de Mônica Bergamo , Funk de Butique, sobre Heloísa Faissol , a Helô Quebra-Mansão  — cinquenta anos depois, um trecho de “Dou prá cachorro”.
“Ai, ai, ai, ai, ai, ai / Para não, tá bom demais / Ai, ai, ai, ai, ai, ai / Vem com tudo, eu quero mais / Tô fervendo, tô no ponto / Eu dou no primeiro encontro / Se você for tarado, vem que eu gosto do babado / Vem com tudo, nesse clima / Ou me come, ou sai de cima / Vem por trás, meu cachorrinho…”
É um abismo musical entre o céu e o mais pútrido lodaçal, é um estupro para os ouvidos, para os olhos e para a alma de qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade.
Como já tive a oportunidade de conhecer jovens que admiram Cauby Peixoto, Nélson Gonçalves e Altemar Dutra, nutro a esperança de que bom gosto não seja uma questão de idade, mas de formação cultural.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

 

 
COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA;
O Prof. Tórtoro é um cronista do cotidiano.
Brilhante, como todos sabem.
Essa crônica traça um paralelo perfeito entre a sonoridade poética de tempos, nem tão remotos, e o lixo musical que predomina nos dias que correm, salvo honrosas execeções.
Parabéns, Tórtoro, por sua contribuição às artes, educação e cultura de nosso povo.
Não esmoreça jamais.

 

Ex-deputado Federal Corauci Sobrinho

 
Meu amigo, eu também voltei no tempo com esse artigo seu, pois eu conheci a aparelhagem de som de seu pai e também ouvi Celestino .
Quando garoto estive em sua casa.
Sobre o que cantavam naquela época e hoje há uma diferença fantástica…será que somos saudosistas ?
Não creio.
Naquele tempo era bem melhor.
Um abraço carinhoso.
Osvaldo de Oliveira Rosa

 

Caro act, há quanto tempo não lhe escrevo!
Mas tenho lido suas crônicas, pois que registram o dia-a-dia de nossa querida Ribeirão, de forma sensível e literária.
Dizem uns que a literatura é a “expressão do belo em belas palavras”. Delson Gonçalves, ensaísta literário, contesta. Ele diz que é também a expressão do feio, mas belamente expresso, com a linguagem forma artisticamente trabalhada. Non pulchrum sed pulchre, não o belo, mas belamente.
Seu texto mostra isso: letras de músicas diametralmente opostas. Uma que canta a relação entre homem e mulher belamente, e outra que a canta de forma mais que pornográfica, canta chulamente.
Erótico, pornográfico e o chulo ocupam graus diferentes.
O corcunda, de Dumas, é ícone da feiúra, idem o boca torta, de Lobato, mas são mostrados com maestria e bom gosto. Já a feiúra relatada na triste letra, em sua crônica fica ainda mais feia pela forma horrorosa com que foi feita.
Está abaixo do chulo.
Parabéns por denunciar mazelas culturais, belamente.
WALDOMIRO W. PEIXOTO – Escritor

 

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