“ A verdadeira amizade é como a fosforescência: nota-se melhor quando tudo ficou às escuras”.
Tagore
Numa noite de sexta-feira, às vésperas das eleições municipais, estive — a convite do meu grande e estimado amigo, o artista plástico Shozo Mishima —, no Centro Cultural Palace, que recebia uma importante e bem organizada mostra da cultura japonesa : pinturas, esculturas, fotografias, ikebanas, bonsais e origamis.
O Grupo Amigos da Fotografia — a que pertencemos minha esposa Lu Degobbi e eu —, foi representado por uma exposição de fotos de Elza Rossato, Sônia Franco e Rogério Bobato, que contavam um pouco da relação de Mishima com a arte e com festejos alusivos aos cem anos da imigração japonesa: uma justa homenagem a quem fez, e muito ainda fará, pela arte em Ribeirão Preto.
No local encontrei bons e antigos conhecidos, conversamos sobre amenidades, rimos um pouco, assistimos à solenidade de abertura, mas , depois de servido o coquetel, apesar de eu haver bebido somente refrigerante, devido à Lei Seca, algo sobrenatural pareceu-me tomar conta do recinto.
Como em Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, senti a presença de mortos entre os vivos: não sei se eram sete ou mais, mas um odor pútrido exalava, sobretudo proveniente de algumas pessoas gradas da cidade que pareciam ter saído de túmulos.
Que eu soubesse, não havia greve de coveiros naquela noite: a greve existente era a da Polícia Civil.
Antevi o momento em que, em hora combinada, os vivos e mortos teriam uma convenção no Palace com a finalidade de relembrar e discutir métodos de traições e golpes, num clima permeado por falsidades, e em meio a urubus que já revoavam a esplanada do Theatro Pedro II.
Olhei para o chão pressentindo que, a qualquer momento, ratos emergeriam de todos os cantos do salão, infestado pelo fedor de defuntos, gerando pânico: um drama não inédito nos anais da espécie humana.
Revi por instantes, como que saídos das páginas de um livro, réplicas de D. Quitéria, Dr Cícero, José Ruiz, João Paz, Maestro Menandro, Pudim de Cachaça, Erotildes.
Sem me despedir de ninguém, deixei o salão e respirei aliviado do lado de fora: agora o ar, mesmo poluído pelos gases de escapes dos automóveis, e pela queimada da cana, era mais puro e saudável que aquele do ambiente anterior.
Eu sabia que, como já havia acontecido em vezes anteriores, alguns dos “grandes homens e mulheres” que encontrei naquela noite haviam tentado perpetrar uma operação borracha e, assim, imaginavam que todos haviam se esquecido de certos acontecimentos vividos: mas o mau cheiro dos corpos em decomposição os traía.
No dia seguinte, conversei com Mishima e me desculpei pela saída à francesa: a vida voltava à sua normalidade, e as pessoas retornavam às suas máscaras.
ANTONIO CARLOS TÓRTORO