LI E GOSTEI: FACA AMOLADA

PULO NUM ABISMO

Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada
Agora não espero mais aquela madrugada
Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada
O brilho cego de paixão e fé, faca amolada.

Milton Nascimento

Li, certa vez, que o percurso de um livro de poemas é exatamente como o percurso da vida: não sabemos o que vamos encontrar, se um pente ou um cadáver. É como pular no abismo. E, para pular de um abismo, não precisamos de muitos artifícios ou justificativas. Apenas pulamos.
E foi o que fiz: mergulhei de corpo e alma no boneco de “Faca Amolada” , poemas de Waldomiro Peixoto.
Sempre temi a não publicação de um livro de Waldomiro por já ser ele, assim como eu, um sexagenário.
Explico, baseado nas palavras de José Ingenieros, autor do livro “O Homem Medíocre”.
Kant é exemplo de um metamorfose psicológica que ocorre com o passar dos anos. O jovem Kant, verdadeiramente ”crítico”, tinha se convencido de que os três grandes baluartes do misticismo, Deus, liberdade e imortalidade da alma, eram insustentáveis ante a “razão pura”; Kant envelhecido, “dogmático”, concluiu, no entanto, que esses três fantasmas são postulados da “razão prática” e, portanto, indispensáveis.
O próprio Spencer, de tendência monista, acabou entreabrindo uma porta ao dualismo baseado na noção de “incognoscível”. Virchow criou em plena juventude a patologia celular, sem suspeitar que acabaria renegando suas ideias de naturalista filósofo.
Assim muitos outros, com o passar dos anos, mudaram de ideia, isso porque o indivíduo ignora seu próprio crepúsculo; nenhum velho admite que sua inteligência tenha diminuído. Aquele que escreve isso hoje, provavelmente pensará o contrário quando tiver mais de sessenta anos.
Ainda bem que Kant, Spencer e Virchow não destruíram suas primeiras obras.
Waldomiro é um grande crítico — para mim um dos melhores — e os grandes críticos são ótimos autores que escrevem sobre temas propostos por outros; a obra alheia é uma ocasião para exibir ideias próprias. O verdadeiro crítico enriquece as obras que estuda e em tudo que toca deixa um rastro de sua personalidade: Waldomiro enriquece até os mais simples e-mails que lhe são enviados. Tem o dom da palavra e uma cultura sólida que permite a ele discursar com conhecimento de causa sobre qualquer assunto.
Por isso a minha preocupação, até agora, de que um dia ele pudesse rasgar, destruir, não publicar seus artigos e poemas numa obra endereçada ao público que o admira, como ele admite fazê-lo elencando algumas hipóteses — para mim, impensáveis — em seu texto “Caro e eventual leitor” , incluso na publicação “Faca Amolada” : “Se os relegar (seus poemas) à gaveta, tem o sentimento da culpa; se os colocar ao leitor, teme a impertinência dos textos; se os rasgar e os jogar fora, fica com o sentimento da delicadeza perdida, já que são frutos de momento terno especialmente pessoal”.
Mas graças a intercessão de Euterpe, musa grega da poesia, ele tomou coragem, e vai publicar seu primeiro livro — espero que não seja o único — para deleite de quem o conhece, e, para aqueles “ A quem, ao sentir a poesia no casual perfume das rosas, sabe do contumaz gosto de sangue que a vida — sempre — serve na taça de cristal ou no afiado gume, ao toque da língua”.
“Faca amolada” é uma obra com poemas “ frutos de circunstâncias muito variadas, temas os mais diversos e épocas as mais diferentes, e é natural que, como na própria vida, não houvesse uniformidade.” E é justamente isso que nos possibilita uma leitura agradável, que não cansa o leitor que se propuser a se atirar no abismo — o interior mais profundo, quase inatingível de um poeta — aberto pelo corte de uma faca amolada que corta como estilete:

“Brandida por mãos invisíveis (do autor) , o ar
Golpeia. Desce e corta o tecido
E o espírito (do leitor) em postas opostas.

Eis o sentimento que tomará conta de cada um que se propuser a mergulhar no abismo de palavras e versos de quem, como eu, nasceu há mais de seis décadas, num mês de agosto, mês de ventania, cachorro louco e muita poeira no ar.
Eu pulei.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

O prólogo do livro Faca Amolada, da FUNPEC-Editora, é da escritora Ely Vieitez Lisboa, a foto da capa — concepção do fotógrafo AC Tórtoro, do GAF — é de Lu Degobbi, fotógrafa do Grupo Amigos da Fotografia de Ribeirão Preto.

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