ARTIGO: UM MINICONTO: ALÉM DO VÉU

 

ALÉM DO VÉU

“Só um miniconto fictício”

 

No vasto vazio de outra dimensão, três almas se encontraram. Não havia paredes, nem chão, nem céu. Apenas uma claridade acolhedora, como se estivessem envoltas por uma manta feita de luz.

Olharam-se pela primeira vez com olhos que não precisavam de corpos, percebendo não apenas as formas do passado, mas também os pesos e cicatrizes que carregaram em vida.

Eram eles: o mantenedor, a diretora e o orientador educacional. Quando vivos, tinham mais de setenta anos e um amor comum: a educação.

Três décadas ou mais, haviam dedicado a moldar mentes e corações, mas, no final, haviam sido tragados pelo labirinto de uma decisão que os separara.

Agora, diante da eternidade, não podiam ignorar o que tinham deixado para trás.

“Lembro-me do peso daquela reunião,” disse o mantenedor, sua voz ecoando como uma lembrança distante. “A escola mal conseguia pagar as contas. Não havia alternativa… ou eu achava que não havia. Eu não queria ser o vilão, mas me vi sem saída.”

A diretora, que fora uma mulher firme em vida, agora parecia mais serena. “Eu lutei por você, meu Orientador Educacional por trinta anos. Senti que sua presença era vital para os alunos, mas, ao mesmo tempo, eu sabia que estava tentando proteger algo que já estava desmoronando. E isso me consumiu.”

O Orientador, calado até então, suspirou profundamente, ou ao menos fez algo que naquela dimensão soava como um suspiro. “Eu precisei daquele salário. Minha família precisava. Mas, mais que isso, eu precisava me sentir útil, continuar ajudando. Quando fui dispensado, senti que minha existência perdia o sentido.”

Ele pausou, como se as palavras ainda o machucassem. “Mas, agora, vejo como todos nós nos destruímos tentando salvar algo que, no fim, não era eterno.”

As almas ficaram em silêncio.

Então, como em uma tela invisível, o tempo se desdobrou diante deles. Viram suas vidas após aquele momento tão difícil: o mantenedor teve sua saúde complicada, poucos meses depois. A diretora, abatida pelo fechamento da escola dois anos mais tarde, enfrentou uma solidão crescente, tendo perdido sua identidade junto ao colégio. O Orientador viveu mais três anos, mas sua angústia o afastou da família e dos próprios sonhos.

“Tudo isso por quê?” murmurou a diretora, com um tom de dor. “Por que tanto peso, tanta culpa, tantas discussões? Estávamos todos tão perto do fim.”

“Porque não sabíamos,” respondeu o mantenedor, com uma tristeza resignada. “Achávamos que as preocupações terrenas eram tudo que tínhamos. Que o tempo era infinito.”

“E agora sabemos o que sempre ignoramos,” completou o Orientador. “Que não era o colégio, nem as decisões, nem os erros que importavam. Era como tratávamos uns aos outros no pouco tempo que nos restava.”

As almas se entreolharam novamente, mas desta vez sem culpa ou julgamento. Apenas entendimento.

Ali, além do véu da vida, não havia mais motivos para disputas ou ressentimentos. Apenas a consciência de que, no fim, o que resta não é o que construímos, mas o amor que semeamos — ou deixamos de semear.

E, com isso, as três almas se dissolveram na luz, unidas pela compreensão tardia de que o tempo é breve, mas o aprendizado, eterno.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da ARL – Academia Ribeirãopretana de Letras
www.tortoro.com.br
ancartor@yahoo.com

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