LI E GOSTEI : DESERTO

ESPERANDO NO DESERTO

“O estudo da história íntima de um povo tem alguma coisa da introspecção proustiana.”

Gilberto Freire, Casa grande & senzala

Ler o livro Deserto — romance escolhido unanimemente pela comissão julgadora do 2º. Prêmio Benvirá de Literatura — é viver momentos de espera num deserto (lugar de vagar, de migrar, de desterro ) povoado de personagens da autoficção do paulistano Luis S. Krausz: obra madura que vai do particular para o geral: “esmiúça os dramas da comunidade judaica, mas alcança os caminhos e descaminhos da alma humana”.
A espera do autor pela chegada do táxi coletivo que o levaria à casa do tio-bisavô Richard em Tel Aviv, era também parte pequena “ mas ainda assim me parecia infinita, daquela longa espera que o tio-avô tinha herdado de seu pai e de seu avô e, antes dele, dos antepassados remotos que tinham passado suas vidas à espera de sinais inequívocos da chegada do Messias”.
Toda a trama ocorre na década de 70, quando um grupo de adolescentes brasileiros vai a Israel para ajudar na colheita de frutas cítricas e aprender a história do país. Eles dispõem de alguns dias de folga, mas estão proibidos de viajar à Europa, onde um judeu ingênuo poderia ceder às tentações burguesas e se desviar do caminho do sionismo. Um deles transgride a interdição e vai para Londres.
Ler as 150 páginas de Deserto é conviver com o autor e seu (tio) Onkel Richard e sua (tia) Tante Gretel em Tel Aviv, é estar com os primos Wally (médica e ex-militante da social-democracia) e Eugen (com pavor ante o homoamericanus) , e as filhas do Dr. Dezsö Krausz (médico emigrado para o Reino Unido ainda antes do Anschluss de 1938 ) , Felicity e Desiree, num casarão vitoriano no centro de Eastbourne, em Londres , é sentir o gosto de comidas típicas, e mais, é sentir cheiros.
E esses cheiros me fizeram lembrar do romance O Perfume, do escritor alemão Patrick Süskind, em que o personagem principal, Grenouille, tem um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permite reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e os armazenava em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Esse olfato é sua única fonte de alegria, que ele aproveita para confeccionar, sem a mínima experiência, perfumes de qualidade excepcional. CAPA-DE-DESERTO
Luis S. Krausz parece fazer questão de marcar cada momento com um perfume característico: “ …eu abria aquele frasco silenciosamente para inalar o perfume do meu tio-avô, aquele perfume que, para mim, era a essência da Europa dos meus desejos, o cheiro profundo e adocicado de uma forma de felicidade que me parecia insuperável” – pag. 62; “O perfume paradisíaco da travessia em direção à sala de embarque já era quase uma extensão da Europa” – pag 65 ; “Ali me aguardavam o aroma e o frio glacial do ar-condicionado, e logo o café da manhã, com iogurte feito na Grã-Bretanha” – pag. 65 ; “…me sentia parte daquele universo rarefeito e respirava o ar abafado carregado de perfumes e cheiros de guarda-roupas de cedro como quem respira o ar da própria casa.” pag 90 ; “O cheiro dos mares gelados e ilhas desertas, que capturava desde sempre as paixões dos navegantes, impelidos pelo ânimo ardente a deixar o calor bem conhecido de casas de madeira e de pedra, e o aconchego de esposas e filhos…” – pag 131 ; “ No balcão de perfumes, o vidro de eau de toilette Aramis oferecia-se a quem quisesse prová-lo, e eu não deixei de borrifar minha nuca, e me senti envolto por aquele halo de Europa que circundava nossos parentes espalhados pelo mundo”.
Enfim, sobram cheiros e emoções até a chegada, numa manhã tórrida de verão, ao Aeroporto Internacional de Viracopos, em avião fretado pela Alitalia.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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