REPERCUTINDO ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO, O EDUCADOR.

REPERCUTINDO ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO, O EDUCADOR.CAPA-REPERCUTINDO-EDUCACAO
Waldomiro W. Peixoto

“Peço desculpas por ter sido prolixo, porque não tive tempo de ser breve.” (Padre Antonio Vieira)

Quero começar pelo começo (perdão pelo truísmo!) ao falar do livro de ACT, cujo título é “Repercutindo Educação”, Editora Legis Summa, 196 páginas, Ribeirão Preto/SP, 2011, assentado sobre o subtítulo “e a sinestesia decorrente de suas relações”. É um título de rara felicidade, que expressa com bastante adequação o teor das oitenta crônicas escritas ao longo do tempo e aqui reunidas em ordem alfabética.

Percussão normalmente se entende pelo som decorrente do choque ou encontro brusco de dois corpos. Um baterista de uma banda que mete sua baqueta no couro é um percussionista. Naná Vasconcelos é nosso maior percussionista contemporâneo. O Milton Banana, do Milton Banana Trio, foi o percussionista mais importante da Bossa Nova, no mesmo nível da batida do violão de João Gilberto. Ambos foram os “Reis da Batida” – um deu no couro; o outro, no pinho.
E por que faço essa digressão? Para entender, na sua essência o que seja ‘repercutir’. Para fazer escola, os gênios acima percutiram tanto que re-percutiram! O mesmo acontece hoje com ACT, com diferença de que seu instrumento é a Educação.
O livro de que trata este modesto comentário, mostra o perfil e a forma de pensar deste Educador que nunca fez concessões aos modismos da atualidade, por entender ele que o modismo não ajuda a fazer do aluno um cidadão, matéria bruta que a ser desbastada e lapidada para a vida.
ACT faz o gênero “hay que ser fuerte; pero perder la ternura, jamás”. Para quem conhece o pensamento do Educador Rubem Alves, ACT é jequitibá e não eucalipto. Sua forma de pensar tem desdobramentos na vida do aluno depois que este sai da Escola, daí o valor do gerúndio no verbo repercutir, além dos inevitáveis desdobramentos entre os colegas educadores que com ele privam.
E onde está a sinestesia? Sinestesia é um termo que etimologicamente significa convergência de sentimento estético. Tecnicamente falando “é o cruzamento de sensações”, conforme Houaiss. É o sentimento despertado em alguém quando este particularmente se defronta com um cheiro, uma cor, um som, um gosto. Se esse alguém sente cheiro de flor de laranjeira pode, por exemplo, lembrar o casamento com a mulher amada ou mesmo a perda dela. Se ouvir uma música pode lembrar-se de uma situação especial muito só sua. O mesmo pode ocorrer com uma cor, um sabor. Um exemplo clássico no cinema ocorre durante o jantar no filme “A Festa de Babette”. Famosas são as madeleines de Marcel Proust. “Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores desencontrados.” – assim começa o romance “O Amor nos Tempos do Cólera”, de Gabriel Garcia Marques.
O cruzamento de sensações subjetivas pode ocorrer com os cinco sentidos, ou parte deles, gerando sensações de alta complexidade. Em cada artigo de “Repercutindo Educação”, o autor faz uma correlação entre o ato de educar e a vida, seja intra ou extramuros, sempre a partir de fatos vivenciados, de cor local ou nacional, o que transfere veracidade às temáticas desenvolvidas. Isso porque o ato de educar, para ele, não se separa do ato de viver a vida como ela é, e transcende os muros das escolas. Em A Escola e a Entrega em Domicílio associa o autor, de forma muito apropriada, os pais que, ao proteger excessivamente os filhos, não os educam; estragam-nos: “Se não ensinarmos nossos filhos como digerir pequenas contrariedades e frustrações durante o período escolar, mais tarde nenhuma Supernanny será capaz de transformá-los em verdadeiros cidadãos, capazes de enfrentar os grandes desafios da vida real.” (p. 28) O autor-educador vê o fato acontecendo e tem o desagradável sentimento de que um cidadão se poderá perder por conta da fraqueza de quem deveria, fora dos muros escolares, dar o exemplo para complementar a sua educação – eis aí a sinestesia e suas correlações.

Do cruzamento e da complexidade de sentimentos que o Educador ACT experimenta, em contato visceral com a escola e quando incorpora fatos cotidianos junto a seus alunos e colaboradores, ou junto aos pais, e os abstrai em textos ora mais ora menos técnicos, ora mais ora menos poéticos – porém sempre precisos e cirúrgicos – pode-se deduzir o subtítulo de sua coletânea de crônicas – crônicas educacionais, por assim dizer – que revelam a fundo o sistema nervoso do ambiente escolar.
Outro aspecto que chama a atenção a partir da leitura de seus artigos é a linguagem – deliberadamente simples (ora, são crônicas!), mas de simplicidade avassaladora, direta, contundente. São artigos concisos, mas não rasos; breves, mas profundos e questionadores. Com isso, justifica-se a epígrafe de Vieira. A complexidade e prolixidade na linguagem quase sempre não são mérito; e a simplicidade, quando não peca pela superficialidade, é sempre uma conquista. Cada artigo de ACT é sempre um soco no estômago, principalmente dos que se identificam com seus questionamentos, seja aluno, pai, colaborador administrativo ou professor, ou mesmo como educador (olha Rubem Alves de novo!).
Não faremos comentários longos dos artigos para não sermos enfadonhos, mas tentaremos a título de provocação para com o eventual leitor desta coletânea, abordar pinceladamente alguns deles. A terceirização da educação dos filhos, por exemplo, é temática recorrente, pois há uma quantidade considerável de pais que julgam ser apenas a Escola – e apenas a Escola – a responsável pelo encaminhamento de seus filhos. A Escola pode o que pode; e não pode mais! A Educação integral não existe sem o concurso da família (À Espera de um Milagre, A Família Não Vai: Já Se Foi, Cadê os Pais?, De Olho no Boletim e tantas outras ). Há crônicas de grande simplicidade, até com lirismo, porém profunda mordacidade, como A Pedagogia do Presépio, quando o autor afirma “Tenho certeza de que Suzane Louise von Richthofen nunca viu e nem participou na montagem de um presépio ao lado de seu pai, Manfred.”(p. 37), com contumaz mensagem subliminar para que os pais estejam presentes na vida de seus filhos – é a educação de berço que a Escola não pode e nem é seu papel dar. Algumas com teor filosófico como A Galinha e Entre os Muros da Escola, mesmo com sabor de auto-ajuda como A Pobre Mente Humana, outras mais antenadas com as tendências contemporâneas exacerbadas pela mídia, como As Ondas da Gripe Suína ou comportamentais a exemplo de Cidadania Pós-Caseiro: na Escola, Cleptomaníaco ou Ladrão, Clientes Especiais, Engolindo Sapos… e Baratas, Fabricando Psicopatas ou TDAH. A hipocrisia da sociedade está presente em muitos textos, a exemplo de De Quem É a Culpa?, ou a ironia um tanto amarga, com análise precisa do emprego da palavra dentro ou fora seu contexto, em É Bárbaro Ser Pedófilo, ou ainda a dura constatação de que a Educação foi ferida de morte em E nem Perceberam. A ironia fina, cortante, de Entre o Sistema Límbico e o Córtex Frontal e Não Deveria: Mas que Existem, Existem, textos que desfiam comportamentos despropositados – não raros – de muitos pais. O questionamento sobre possíveis malefícios da aprovação automática está presente em Espírito da Lei ou de Porco?
Particularmente reveladoras da forma de pensar do Educador Antonio Carlos Tórtoro são as crônicas Laboratório, Medo ou Respeito?, O Pianista e Precisa-se de Matéria Prima, das quais transcrevemos trechos que falam por si sós: “A escola deve ser o grande laboratório experimental em que os jovens exercitam o ser cidadão” (p. 100); “Na sociedade, quando o jovem se vê adulto e comete deslizes, o Policial prende, o Juiz condena, o Promotor acusa. Portanto, penso ser melhor prevenir e educar durante o percurso no grande laboratório chamado escola, onde sempre as consequências dos atos cometidos serão menos dolorosas e terão o intuito pedagógico de preservar certos valores.” (p. 101); “Sou um educador/disciplinador por acreditar que não existe possibilidade alguma de aprendizagem num ambiente em que não haja disciplina e respeito.” (p. 115); “Por isso é preciso associar a pedagogia da esperança, como concepção da educação, à pedagogia da luta: a educação deve ser mais um ato de construção de conhecimento do que a simples transmissão de conhecimentos.” (p.132); “Penso que o objetivo da escola é educar a emoção e autoestima, desenvolver a solidariedade, a tolerância, o raciocínio esquemático, a capacidade de gerenciar os pensamentos nos focos de tensão, a habilidade de trabalhar perdas e frustrações, enfim, formar cidadãos pensantes: e isso tudo não se consegue sem disciplina, sem uma razoável matéria prima.” (154); Sua confissão em Rubem Cione: o Mestre revela muito do homem e do cidadão que escolheu sua missão no mundo: “Sou professor e, se um dia merecer ser lembrado após a minha morte, que o seja como educador.” (p. 159), arrematada com a convicção de que “A vida escolar deve ser um vestibular para a universidade da vida”, conforme Se Ficar o Bicho Come, à página 168.

Nas oitenta crônicas, organizadas em ordem alfabética, ACT revela-se um pensador, ao se colocar corajosamente frente a frente, sem fugir dos questionamentos e sem colocar panos quentes nos temas que nos afligem a todos, sejamos nós alunos, professores, funcionários administrativos, orientadores pedagógicos ou pais.
Muito pelo contrário, estes últimos, os pais, são assunto recorrente na maioria dos textos, quando colocados pelo cronista de forma contundente na berlinda por, em grande parte, se posicionarem de forma omissa em relação à educação de seus filhos, terceirizando esta, de forma até abjeta, integralmente à escola. Não podem e não devem esquecer os familiares que a educação integral não prescinde do convívio familiar. Se, nas palavras da Educadora Ely Vieitez Lisboa, no prólogo, “os professores são os alicerces e o sustentáculo” do sistema educacional, a educação extramuros – a educação de berço propriamente dita – é responsável pela majestade do edifício e beleza do paisagismo. Há um momento em que a Escola já não pode estar mais presente na vida do aluno e os ínvios caminhos do vir a ser se apresentam – é chegada a hora da verdade.
“Repercutindo Educação”, ao expor as entranhas e as vísceras do ambiente escolar, mostra-nos sem meios-termos, a receita única e possível para educar cidadãos para a vida: Escola e Família, juntas, inelutavelmente tem de caminhar de mãos dadas.
Esta é uma obra que poderá se transformar em leitura obrigatória a todos quantos militam na Educação de forma integral, íntegra e responsável, sabendo ser não a única, mas certamente uma das mais importantes ferramentas de transformação da criança em cidadão, ao lado da família. Fora da Educação não há salvação.

Marília, 20 de abril de 2014.

ARE-Academia Ribeirão-pretana de Educação, ARTIGOS, Colégio Anchieta, CURRÍCULO, DEPOIMENTOS DE AMIGOS, EDUCAÇÃO, Educacional, Minhas obras literárias