DESCONSTRUÇÃO


“A desconstrução não significa destruição, mas sim desmontagem, decomposição dos elementos.”

Estou abrindo gavetas e encontrando nelas pedaços de minha história que meu pai, orgulhosamente, sempre guardou e mostrou aos amigos e conhecidos: recortes de jornais e revistas que falam de minhas atividades culturais e educacionais, exemplares de livros que escrevi, fotos do meu tempo de criança, convites para eventos, cartões de Natal.
Estou afastando traças e tirando poeira do meu passado.
Estou retirando das paredes quadros que pintei e dei de presente aos meus pais.
Estou me encontrando em cada canto de uma casa vazia.
Estou desconstruindo mais de cinqüenta anos de duas vidas: recolhendo pratos, panelas, enfeites, eletrodomésticos já com prazos de uso vencidos, roupas mofadas, colchões impregnados com cheiro de urina.
Estou desmontando a casa de meus pais, que durante anos me acolheu em minha juventude.
Um plasma invisível permeia todos os espaços: os dois quartos, o corredor, a sala, a copa, a cozinha, o banheiro, o alpendre, a garagem, o jardim, um pequeno quartinho no quintal e a área de churrasco que abriga ainda, só em minhas lembranças, uma parreira sob a qual durante anos meu pai empalhou cadeiras e brincou com os netos.
Ainda ouço minha mãe mexendo no fogão: cozinheira de mão cheia.
Escuto ruídos do meu pai voltando do Diederichsen para o almoço.
Minha irmã, adolescente, ouve música no quarto dela.
O pintassilgo solta o canto na prisão de décadas.
Em cada canto mil lembranças vão sendo esfaceladas com a retirada dos móveis e utensílios domésticos de seus, até então, consagrados lugares, desfazendo a paisagem que só restará em minha memória porque são vistas somente por minha alma e meu coração.
O carrilhão está parado, assim como o tempo, e preso à parede durante a desconstrução lenta e dolorosa do imóvel.
As ferramentas empoeiradas, que eu sempre via meu pai usar com extremo cuidado e maestria, , jazem no quartinho do fundo em perfeita organização: agora, quebram o ruído da casa ao serem usadas, somente em meus pensamentos.
Recolho os remédios de cima do móvel que durante muito tempo acolheu vasos de flores e frutas artificiais, garimpo fotos e recortes de jornais, misturados a documentos que não servem mais, remexo em gavetas que parecem não ser abertas há séculos.
Desligo o relógio de luz, fecho o registro de água, tranco a porta da sala após fechar outras portas e janelas, desço um lance de escada olhando o jardim ressecado, passo a chave no portão.
Deixo para trás uma parte do livro de minha história, os capítulos em que vivi com meus pais até meus vinte e sete anos, dos sessenta e cinco que hoje carrego: mudo a página umedecida por uma lágrima de nunca mais, mas não fecho o livro.
Abro uma nova página dessa história – que, felizmente, ainda não acabou – no capítulo chamado Casa da Amizade.
Um homem e uma mulher que em nada lembram Claudio e Terezinha dos tempos de luta pela sobrevivência: unidos há sessenta e sete anos.
Uma saleta, um banheiro, um quarto bem arejado, refeições e medicação administradas na hora certa, atividades físicas e culturais: tudo permeado com muita atenção, amor e carinho.
Ele toca a gaita inseparável.
Ela ora para sua Maria Rosa Mística.
Ainda reconhecem os filhos, e se lembram de parte dessa longa história: mas até quando ?

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
WWW.tortoro.com.br

ARTIGOS