LI E GOSTEI : OS VERSOS SATÂNICOS

UMA METÁFORA DE ANJO E DEMÔNIO

“Para nascer de novo, é preciso morrer primeiro”

Num momento em que se discute se crianças podem ou não  ler obras de Lobato com componentes racistas  , em que uma revolta toma conta da mídia porque, na América, alguém  queima o Corão instigado por um líder religioso, e em que, no colégio onde trabalho, uma aluna se recusa, por motivos religiosos, a  ler o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente,  resolvo conhecer Os Versos Satânicos de Salman Rushdie, uma ficção onde não sabemos onde termina o conto e começa a verdade.
Contar todas as mirabolantes e fantásticas histórias que envolvem as reviravoltas do destino de dois homens — um transmutado em anjo ( Gibreel Farishta) e o outro em demônio ( Saladim Chamcha) , é estragar o prazer, o susto, a confusão, a curiosidade, e às vezes até a dificuldade de se digerir cada linha do livro.
É um livro que, nas suas  597 densas páginas (Editora Companhia das Letras) sobre o panorama perfeito da cultura moderna, desvenda o  paradoxo ocidente-oriente, e deixa o leitor, ao seu final, com um sentimento de ignorância completa, e com a sensação de não saber dizer se  a obra é uma catarse do autor ( sua forma de exorcizar demônios de sua herança anglo-indiana) ou se é simplesmente uma forma , sem piedade, de crítica, sem fazer concessões, ao dois mundos , oriente-ocidente, numa narrativa que mistura ficção e realidade.
Gibreel ( ex-menino pobre das ruas de Bombaim, é a estrela histriônica e cheia de caprichos, mas que tem tanta luz dentro de si que recebe o perdão para todos os seus pecados, antes mesmo de cometê-los, é um ator de sucesso, faz filmes teológicos e já interpretou um sem número de deuses do intricado panteão hindu)  e Saladim ( menino rico de Bombaim, filho de um  próspero fabricante de fertilizantes, quer ser inglês, falar, vestir-se, ter a cor dos britânicos e, por isso, rejeita a casa paterna, a cultura de seus pais e do país de origem, tornando se um ator atormentado por demônios interiores, complexo de Édipo mal resolvido, relação tensa com o pai, frustração na carreira, inadequação com a própria cor da pele escura) são ambas criaturas atormentadas por serem demasiadamente humanas.
Em resumo , dois homens caem  do céu depois que terroristas explodem o avião em que viajavam. Ambos são indianos e atores, e chegam incólumes ao solo da Inglaterra,onde se metamorfoseiam, um em diabo, o outro em anjo.
Muitas coisas opõem e associam os acidentados: um é apolíneo, o outro, dionisíaco; um é apocalíptico, o outro, integrado; um é apegado à sua origem, o outro está decidido a conquistar a nova nacionalidade. Transitando entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida, o romance alegórico, impregnado de magia, transcende o problema específico do emigrado que flutua entre culturas para falar de todos os cidadãos de um mundo dilacerado.
Os versos satânicos rendeu a Salman Rushdie o Whitbread Prize e uma sentença de morte (em fevereiro de 1989 foi estipulada uma recompensa de US$ 2,5 milhões de dólares a quem matasse Salman porque o livro foi considerado uma blasfêmia contra o Islã)  promulgada pelo aiatolá Khomeini. Segundo as leis islâmicas, uma fatwa ( sentença de morte) só pode ser anulada por quem a proferiu, mas com a morte de Khomeini, em junho de 1989 ,a condenação tornou-se eterna. Em setembro de 1998, o presidente iraniano Mohammad Khatami anunciou que o caso de Salman Rushdie deveria ser considerado completamente encerrado. O governo do país fez uma abdicação formal na sede da ONU- Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque.
Penso que, não fosse a polêmica acima, o livro não teria sido lido por muitos porque, por ser, segundo o próprio autor,  o Alcorão com as suas doutrinas e sunas ( e por isso mesmo muito rico em informações específicas não do conhecimento habitual no mundo ocidental),  em menor quantidade  seriam os interessados em sua leitura.

 

ANTONIO CARLOS TÓRTORO

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